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A história do pulgão no mundo do vindo

Folha infectada com o Phylloxera Vastatrix, o pulgão (Foto: Divulgação)

Publicado em 02/02/2018

Se você já leu um pouco sobre vinho ou já visitou as regiões vinícolas do Chile provavelmente já ouviu a história da Phylloxera Vastatrix uma praga que dizimou vinhedos mundo afora e que moldou a produção de vinho como vemos hoje.

O mundo atravessou tempos de prosperidade após as Guerras Napoleônicas em 1815 e a Revolução Industrial. Elas foram catalisadores da globalização e da abertura do mundo para as belezas de outros continentes com a maior velocidade dos novos navios a vapor.

Entre produtos, alimentos e inovações, uma das coisas exportadas do Estados Unidos, mais especificamente do Vale do Mississippi, para a Europa quase destruiu os vinhedos do mundo. Um afídio microscópico atravessou o oceano e começou a afetar as videiras européias. O resultado deste quase holocausto transformou a indústria do vinho no mundo inteiro.

Em 1866, no sul da França, próximo a Avignon, um produtor percebeu que uma parcela de suas vinhas havia morrido. Pouco tempo depois a infecção se espalhou e o governo francês iniciou uma investigação que descobriu que as plantas mortas estavam doentes e com as raízes apodrecidas. As plantas diretamente ao redor dessas, no entanto, estavam cheias de insetos amarelos e microscópicos. Esse inseto era parente da Phylloxera do Carvalho e para sublinhar seu poder deram o sobrenome de Vastatrix, latim para Devastador.

No início alguns incrédulos duvidaram que um pequeno afídio pudesse causar tanto dano e pesquisas foram realizadas em climas, solos, videiras... O tempo passou e a certeza de que a Phylloxera era realmente a culpada aumentou quando vinhedos que foram alagados por uma forte chuva e outros de solo bem arenoso estavam saudáveis. Após destruir o Languedoc e a Provence o pulgão foi para o norte e, em 1869, destruiu quase 60% dos vinhedos de Bordeaux, região que estava a todo vapor.

Quando a França chegou ao consenso, em 1875, ela já chegava às terras do Loire, Champagne e até mesmo Borgonha. Quando a culpa e o local de origem da praga foram confirmados iniciaram as tentativas de conter a praga. Dezenas de técnicas foram testadas para conter o avanço do pulgão. Existiu até mesmo uma técnica de se colocar um sapo vivo em cada vinha para atrair a praga!!

Logo uma guerra entre tratamentos químicos e a produção de uvas híbridas se iniciou, com uma vantagem para os químicos, como o enxofre, que há pouco tempo haviam erradicado o Oídio que também dizimou a produção de vinho na França. Os tratamentos se provaram absurdamente trabalhosos e as uvas híbridas resolviam o problema parcialmente com a desvantagem de produzir vinhos que mal se podia beber. 

Finalmente a prática de plantar a Vitis Vinifera em raízes de videiras americanas, ou a enxertia, começou a ganhar mais adeptos. Após anos de desenvolvimento e identificação de que variedade de raiz seria compatível com os diferentes solos e climas e ainda por cima efetiva contra a Phylloxera a prática foi reconhecida. Em 1900 cerca de dois terços dos vinhedos franceses estavam enxertados em raízes americanas.

Infelizmente nesse momento muitos produtores quebraram e diversas regiões praticamente sumiram do mapa. Estimam que 1874 foi o auge da superfície de vinhedos na França com mais de 2,4 milhões de hectares. Em 2014 era de "apenas" 791 mil. Outra mudança foi no cenário em que vinhas misturadas de alta densidade deram lugar à espaldeiras organizadas e até mesmo a seleção de melhores variedades de acordo com o terroir foi realizado, como por exemplo Bordeaux que deixou de utilizar Malbec e principalmente Carménerè.

E finalmente outro grande problema foi a importação de vinhos de outros países para complementar a demanda. Muita coisa falsificada foi comercializada e vinhos de diferentes regiões e até países eram misturados. No início a Espanha se beneficiou sendo um grande alvo da importação de vinhos pelos franceses e também da experiência trocada com produtores, como por exemplo a influência de Bordeaux em Rioja. Mas, no fim, com a retomada da produção na França os espanhóis sofreram embargos e a indústria teve um grande colapso.

O mesmo aconteceu com o Norte da África. No novo mundo, a Austrália tem um controle da praga altíssimo e algumas regiões são "Phylloxera Free" e de acordo com informações locais 74% dos vinhedos não são enxertados. O Chile também virtualmente não foi afetado, pois se beneficiou de sua posição geográfica e foi protegido por suas barreiras naturais. Lá inclusive, segundo nos contam os locais, foi o local de renascimento da Carmenérè antes esquecida em Bordeaux.

Coincidentemente na Argentina, com a Malbec, temos outra "renegada" de Bordeaux como a variedade principal. Até mesmo no seu país de origem a praga foi altamente problemática e retornou com força por volta de 1980 após a utilização de raízes sem a devida resistência, causando enormes problemas para o vinho Americano. Quem diria que um pulgão causaria tantas mudanças na indústria do vinho?

*** Para melhor entendimento, o pulgão é apenas o agente provocador e as variedades americanas são atacadas somente nas pequenas raízes alimentadoras, enquanto nas variedades européias são as grandes raízes atacadas causando calos e machucados chamados tuberositis permitindo bactérias e fungos a infectar a planta causando sua morte.

 


Sobre o autor

Eduardo Machado Araujo

Certified Sommelier - Court of Master Sommeliers


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