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A nova guerra mundial é feita de linguagem, por Vinicius Lummertz

A nova guerra mundial é feita de linguagem, por Vinicius Lummertz
A política do século XXI não se trava com armas, mas com narrativas. (Charge: Ed Carlos, especial para o Imagem da Ilha)

Publicado em 12/08/2025

A política contemporânea é travada por narrativas, afetos e slogans. Wittgenstein anteviu esse conflito. E ele já é global. “ O mundo é tudo o que é o caso”, escreveu Wittgenstein no início de seu Tractatus. Mas no século XXI, das redes sociais e da AI , talvez devêssemos reformular: o mundo é aquilo que se diz que é o caso, e o que se faz com essa linguagem. A guerra global do nosso tempo já começou. Ela não foi formalmente declarada, mas seus efeitos se acumulam: polarização radical, erosão institucional, colapso do diálogo, identidades políticas intransponíveis. Não há tanques nas ruas, mas há palavras como armas. A linguagem se tornou o novo campo de batalha, e os jogos de linguagem descritos por Wittgenstein são a chave para entender esse fenômeno.

Segundo ele, não existe linguagem neutra: as palavras só têm sentido dentro de contextos culturais e usos sociais específicos, os chamados “jogos de linguagem”. Hoje, o que vemos são jogos incompatíveis em confronto direto, sem gramática comum que permita a conciliação. A política virou um choque de léxicos fechados. A paz do pós-guerra, moldada em Bretton Woods, na ONU, na OTAN e na diplomacia ocidental , foi construída sobre uma linguagem comum de um grande vitorioso. Essa linguagem se fragilizou com o tempo.

Donald Trump foi o pioneiro da linguagem performática na política recente. O slogan “Make America Great Again” não é somente uma tese, patriótica, mas também um ritual identitário. Seu poder não está só na própria coerência, mas na repetição. O tarifaço contra o Brasil, por exemplo, não é uma política comercial racional , é uma narrativa de força geopolítica . Steve Bannon entendeu isso cedo: na era da guerra simbólica, ganha quem comanda o léxico. Essa parece ser a tese mais radical de contraponto ao esquerdismo , como dizia Lenin , a doença infantil do socialismo.

No Brasil, o bolsonarismo replicou esse padrão. Palavras como liberdade e globalismo descrevendo ou não os fatos, dependendo das opiniões , constroem , todavia , realidades semânticas. São marcadores de pertencimento, ferramentas de mobilização afetiva. Mas o mesmo se aplica à esquerda, especialmente à vertente identitária que se consolidou nos EUA e na Europa nas últimas décadas, e que foi importada, de forma acrítica, pelo Brasil. Esse novo progressismo se articula por meio de uma linguagem moralista, por vezes inquisitorial, que transforma qualquer discordância em opressão e qualquer crítica em ofensa.

A esquerda identitária, ao colocar raça, gênero, sexualidade e micro agressões como eixos absolutos do discurso público, contribuiu para a desagregação da linguagem cívica comuns, o que levou o Partido Democrata americano ao paroxismo. Ao substituir a nação por identidades fragmentadas, criou o vácuo no qual a direita prosperou. A linguagem moral da esquerda funcionou, paradoxalmente, como escada para o seu oposto. Não é difícil entender por quê: quem moraliza o discurso, abre espaço para quem promete restaurar o “real”.

No fundo, tanto a esquerda quanto a direita com frequência agem como seitas. Wittgenstein já dizia: “A filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento pela linguagem.” Hoje, esse enfeitiçamento é bilateral e no centro pode haver razão mas não há feitiço. Há, porém, algo ainda mais perigoso no cenário atual: o discurso totalizante do fundamentalismo islâmico. Se a linguagem identitária da esquerda é uma igreja moral e a da direita é um culto político, o jihadismo é uma teocracia bélica. No Oriente Médio, Hamas e Hezbollah usam a linguagem do martírio, da resistência sagrada e da guerra santa. Seus discursos não se baseiam em diálogo ou valores universais, mas em códigos medievais absolutos, irracionais e inegociáveis. É uma gramática impermeável à política.

Do outro lado, Netanyahu usa a retórica da “defesa da civilização” para justificar ações igualmente simbólicas — e devastadoras. A guerra entre Israel e Irã (e seus representantes) é antes de tudo uma guerra de discursos, em que a linguagem precede a bala.

Na Rússia, Putin recorre à mitologia histórica — a “desnazificação” da Ucrânia, para justificar uma guerra de conquista. A mentira não importa: o que importa é que o discurso funcione dentro da gramática russa. Como em Wittgenstein: o sentido está no uso. E o que fazem China e Índia? Jogam o jogo do silêncio. Xi Jinping e Narendra Modi se recusam a falar a língua ocidental. Para eles, a ambiguidade é poder. O Brasil do Itamaraty já rezou por essa cartilha pragmática. Wittgenstein, aliás, escreveu: “Do que não se pode falar, deve-se calar.” O silêncio, neste caso, é estratégico — e tão eloquente quanto qualquer discurso.

Essa nova guerra mundial não será vencida por força militar. Será vencida — ou perdida — nos campos da linguagem, da cultura, da informação. É uma guerra sem fronteiras fixas, sem tratados, sem rendição.

E talvez sem fim. Se não recuperarmos uma linguagem comum numa gramática compartilhada de humanidade, justiça e verdade, virá o colapso da política como prelúdio de algo muito maior para nós : a decomposição da própria civilização liberal. Wittgenstein nos alertou: “Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.”

 

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Sobre o autor

Vinicius Lummertz

Vinicius Lummertz

Ex-Ministro do Turismo, ex-Secretário de Turismo e Viagens do Estado de São Paulo, ex-Secretário de Articulação Internacional de Santa Catarina


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