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O nascimento de um escritor
Romance “KG 412”, cuja história se passa na Segunda Guerra Mundial, será lançado no Café del Mar por Jean-Victor Martin

Autor foi até recentemente cônsul honorário da França em Florianópolis (Fotos: Angela Arruda Martin) **Clique para ampliar

Publicado em 15/11/2022

Nosso Personagem da Semana, Jean-Victor Martin, é um cidadão do mundo. À frente da Aliança Francesa e na diplomacia, ele já viveu em diversos países. O Brasil, porém, conquistou seu coração. Florianópolis, onde aportou pela primeira vez há 46 anos, foi a cidade escolhida para o lançamento do seu primeiro livro, um romance que transporta o leitor aos tempos sombrios da Segunda Guerra Mundial. O Imagem da Ilha conversou com ele sobre sua trajetória e a estreia na literatura, além de temas envolvendo o Brasil e a França.    

Imagem da Ilha: O senhor criou fortes laços com o Brasil. Dirigiu durante muitos anos a Aliança Francesa e atuou como cônsul honorário da França em Florianópolis, além de ter casado com uma catarinense (Ângela Arruda Martin). Conte-nos como começou e evoluiu essa história de amor pelo nosso país? O que o encanta no Brasil e, em especial, em Florianópolis?

Jean-Victor Martin: Cheguei em Floripa em 1976, vindo diretamente de Bangkok, meu primeiro posto, para dirigir uma Aliança Francesa promissora, porém precária ainda. O contraste foi marcante! O ambiente controlado (repressivo?) daquela época fez com que a Aliança adquirisse rapidamente a imagem de um lugar de relativa liberdade de expressão. Os florianopolitanos, naturalmente curiosos, afluíram em grande número e a  Aliança cresceu tanto que teve que se mudar para perto de uma loja de "Chocolate Caseiro Gramado", propriedade de uma moça bem bonita. Aconteceu o que vocês imaginam, e não somente por amor ao chocolate!

Entre 2006 a 2009, tive a oportunidade de conhecer um outro Brasil na direção-geral da Aliança Francesa do Recife. Experiência muito enriquecedora. Voltei para cá em 2012, concretizando o velho projeto de me aposentar na Ilha. Na mesma época, faleceu o Francisco Borghoff, cônsul honorário da França em SC. Vários amigos me incentivaram a concorrer para esta função. É assim que atendi a comunidade francesa e o público catarinense até 2021, alcançado pela aposentadoria compulsória.

O que me encanta em Floripa? Um "way of life" mais descontraído, a espontaneidade das pessoas no seu relacionamento (nunca se veria no metrô parisiense alguém puxar uma conversa com um desconhecido!) além dos encantos naturais e da infraestrutura relativamente satisfatória (saúde, abastecimento etc...).

O senhor vive hoje uma merecida aposentadoria. É possível supor que o senhor aproveitou o tempo livre para, pela primeira vez, escrever uma obra de ficção. Era um sonho antigo lançar um romance? O ofício de produzir literatura veio para ficar na sua vida?

​A vontade de escrever nasceu no final dos anos 1990. Naquela época, estava na nossa embaixada no Vanuatu, arquipélago do Pacífico Sul. O nosso embaixador era uma pessoa bem original. Dizia ele: "Quando te chamo de 'amigo', está tudo bem. Quando eu te chamar de 'caro amigo', podes te preparar!". Um dia em que eu me encontrava no gabinete dele, avaliando o envio de um telegrama, ouvi: "Amigo, sente-se. Sabe que você escreve bem?". Isso despertou minha vontade de produzir. A ideia do tema veio rapidamente, puxada pelo que marcou a minha infância e provavelmente a minha vida até hoje: as raras lembranças ou evocações do meu pai sobre a segunda guerra mundial, objeto de grande curiosidade minha. Mas a ideia ficou maturando até 2019, quando resolvi concretizá-la.

Dedicar-me à produção literária? Por que não? Não faltam ideias, temas e vontade! Vai depender da recepção reservada a este primeiro romance. 


Capa do Romance “KG 412” (Editora Despertando Talentos), de Jean-Victor Martin
 

Sua família viveu os horrores da Segunda Guerra Mundial. Quais histórias familiares o senhor guarda desse período?

Foram seguramente horrores durante o conflito (1939/1945): privações. separações, delações, desaparecimentos e mortes, fome, frio, êxodo. As sequelas marcaram ainda a minha geração e as seguintes, se bem que mais suportáveis, apesar do sofrimento e das frustrações. Uma das minhas lembranças mais marcantes daquela época? Nunca tínhamos pão fresco em casa. O pão velho tinha que ser consumido antes de cortarmos o mais recente, hábito nascido durante a guerra e esses anos de racionamento. 

Ocorre também que falava-se pouco da guerra em casa, por motivos que conto no romance. Meu pai tinha uma certa vergonha de ter escapado de uma morte quase inevitável. Daí minha curiosidade pelo tema.

“KG 412” se passa na Europa atacada por Hitler e Mussolini. O personagem principal, Victor, é preso, mas recebe um tratamento diferente do reservado a outros milhares de prisioneiros, tendo sido inclusive protegido por um alto dirigente nazista. O leitor é convidado a descobrir porque ele foi privilegiado. É correto afirmar que o romance traz uma história de mistério com final feliz que se desenrola numa época sombria?

Victor foi preso no seu terceiro dia de combate, sem sequer ter queimado um só cartucho. Depois de alguns meses num campo de prisioneiros bem diferente, foi enviado para uma mina de carvão. Ferido por uma lasca de pedra, ele estava convalescendo na enfermaria da mina quando surgiu a esposa de um alto dignitário do poder nazista. A sequência, eu conto no livro... 

Interessante, talvez, revelar que a história é composta de três elementos : a verdadeira história de Victor, trechos da minha própria história transpostos na de Victor, e o resultado de pesquisas sobre o contexto histórico e social da época.

O mundo acompanha com preocupação a guerra entre russos e ucranianos. Você acha que os mais jovens estão, aos poucos, esquecendo a tragédia da Segunda Guerra? Sabemos que uma geração que não conhece a história pode repetir os erros do passado. Como o senhor avalia o cenário europeu na atualidade?

De 1952 para cá, a Europa consolidou-se e unificou-se aos poucos. Ainda temos na Comunidade Europeia dois ou três países um pouco "rebeldes", mas, de uma maneira geral, a Europa confia na sua solidez, à imagem do "casal franco-alemão" como costumamos dizer. Mas os erros do passado podem, de fato, se repetir. Tanto que é forte a tentação de dizer que Putin invadiu a Ucrânia como Hitler invadiu a Polônia... e Putin é suposto conhecedor da história!

Os mais jovens, hoje, sabem algo sobre a Segunda Guerra Mundial graças ao ensino da história nos colégios, e aos ecos da mídia - cinema, TV, imprensa - relatando episódios e comemorações. Mas, ao meu ver, esse conhecimento não deixa de ser superficial. 


Jean-Victor vem amadurecendo a ideia de um primeiro livro desde os anos 1990


A cultura francesa continua relevante ou perdeu influência nos últimos tempos?  

Na minha opinião, continua relevante, mas mudou de campo. Até meados do século XX, nossa literatura, nosso teatro, nossa língua tinham uma presença marcante no mundo. Hoje, o cinema, a generalização das T.I. e talvez o modismo tornaram preponderante a língua inglesa. Um exemplo bem absurdo:  na filial de uma grande construtora automobilística francesa instalada no exterior, assisti ao diálogo de vários funcionários, nem em francês, nem na língua nativa, mas em inglês. Sem falar das instâncias internacionais (Conselho Europeu, ONU, OTAN, Olímpiadas, etc...) onde a língua francesa está inscrita nos regulamentos, mas é pouco praticada. No comments, como dizem nossos amigos britânicos...

Que me perdoe a escritora francesa Annie Ernaux, prêmio Nobel 2022,  mas nossa presença mudou de campo e hoje se manifesta mais nos setores da ciência e da tecnologia. Devemos à França o TGV (trem de grande velocidade), o supersônico Concorde, o lançador de satélites Ariane, o  avô da Internet que se chamava Minitel e numerosas patentes no campo da saúde. 

E o Brasil? De que forma pode ser beneficiado com uma aproximação maior com a França?

Brasil e França já têm uma longa historia de colaborações, nos mais diversos setores de atividade: na pesquisa e produção farmacêutica por exemplo (Oswaldo Cruz e o Instituto Pasteur), na construção automobilística (Santos Dumont importou o primeiro Peugeot em 1898 para presentear o irmão. Hoje, Peugeot, Citroën e Renault são presenças marcantes no mercado brasileiro). No dia a dia, a famosa caneta BIC, francesa, é produzida também na zona franca de Manaus e, com 400 milhões de canetas produzidas anualmente, o Brasil é o segundo maior mercado da empresa. Poderíamos ainda citar a hotelaria (Novotel, Sofitel, Ibis, Club Méditerranée), a distribuição (Carrefour, Leroy Merlin), e a aviação. O Caravelle foi o primeiro jato a entrar em serviço no Brasil, por iniciativa da Cruzeiro do Sul, da Varig e da Panair. No dia 21 de janeiro de 1976, o voo inaugural do famoso Concorde se fez na rota Paris - Rio de Janeiro. 

Tantas parcerias, em setores tão diversos, vão continuar evoluindo com o tempo, tenho certeza.

Qual, na sua opinião, é o mais importante escritor da história da literatura francesa? E dos brasileiros, qual foi o melhor?  

Pergunta delicada, pedindo uma resposta também delicada... Meu conhecimento da literatura brasileira está longe de ser sólido. Participei, em 2008, acho, da elaboração de uma curta-metragem inspirada em Clarice Lispector. Gostei bastante do estilo dela. Mas isso não apaga o mérito de numerosos outros autores brasileiros. Como não admirar Machado de Assis? Guimarães Rosa? Jorge Amado? Luiz Fernando Veríssimo ou Cecilia Meirelles, entre tantos outros?

E no campo da literatura francesa, quem sou eu, modesto autor de um primeiro romance, para julgar e classificar a miríade de escritores franceses ou francófonos ? Não vou me arriscar ...

Depois de Florianópolis, onde o senhor pretende lançar o livro? Pensa no futuro numa versão em francês?

O livro "KG 412" será lançado quinta feira, 24 de novembro, à noite, no café Del Mar, perto do Beiramar Shopping. Em seguida, temos previsto um lançamento em Joinville, com o Instituto Internacional Juarez Machado e a Aliança Francesa, e em Blumenau, em parceria com a Aliança Francesa, o Instituto Cultural Brasil-Alemanha e o Consulado Honorário da Alemanha. 

Também quero contactar clubes de leitura em várias cidades de Santa Catarina. Agora, para ultrapassar as "fronteiras" do nosso Estado, só com o patrocínio de um grande distribuidor, já que a presente edição foi modestamente realizada graças à ajuda de amigos e colegas daqui.

Quanto à versão francesa, ela já existe. Aliás, foi o texto original, cuja tradução em português está sendo lançada agora. A versão francesa está sendo distribuída pela Amazon/France, infelizmente não é accessível a partir do Brasil.


Por Urbano Salles

 

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