Cabeça de cozinheiro
Depois de muito pensar (sim, cozinheiros pensam... e muito, e se não pensam, deveriam) tomei consciência que passamos a vida decorando conhecimentos para, assim, sermos reconhecidamente cultos e participantes de uma elite social e/ou profissional! Será?
Sou um cozinheiro e, enquanto cozinheiro, sei o que é panela, concha, cebola picada, tomate em cubinhos, legumes em tirinhas, alho amassado e assim por diante. Sei também fritar, refogar, assar e até cozinhar no vapor. E tudo isso em português! Para cozinhar e ser cozinheiro, nunca busquei decorar nada, nenhuma fórmula da física quântica, nem o peso do carbono na composição de algum gás, e muito menos como é chamado um braseiro na Coréia do Norte.
Útil saber o ponto de fusão da água pura, com sal ou com açúcar. Útil saber também as formas e tempo de cocção de vários produtos. Imprescindível compreender reações químicas. Mas, como cozinheiro e glutão dedicado (glutão: voraz, aquele que come com avidez) aprendi a arte das panelas na prática, e aos poucos passei a cozinheiro oficial de um bistrô, que ao lado da minha Fafá, comando há mais de vinte anos.
E sem decorar nada, sem precisar consultar um dicionário de francês para picar uma cebola, fui arremessado a chefe de cozinha por uma catapulta gastronômica. Mesmo não tendo o conhecimento de ‘chefs’ formados em milhares de cursos de gastronomia do Oiapoque ao Chuí, passando até por aqui, me promoveram a chef. E que peso ser chef...
O meu picadinho de tomate sem semente nem pele passou a ser concassé. Que raios de concassé é esse? Porque meu tomate picado não pode ser somente um tomate picado? Talvez pelo peso de ser chef!
Legumes à Julienne! Quem é essa Julienne que fez os legumes em tirinhas finas e com cinco centímetros de comprimento ser batizado assim para toda a eternidade gastronômica? E os meus legumes em tirinhas? Já tive uma assistente Juliana que fazia tirinhas tão bem quanto a tal Julienne, e nem por isso entrou para a Larrouse da Gastronomia!
Se essas tiras de legumes forem cortadas novamente formando cubinhos: muito prazer, agora é chamado de mirepoix ... ou brunoise! E se ao invés de legumes usarmos folhas de verduras e ervas para cortar em tiras, Julienne vai para o espaço e o resultado do picadinho é la chiffonade.
Da mistura de basílico, flores de lavanda, erva-doce, segurelha e tomilho, mesmo que colhidas no quintal, as ervas são e sempre serão de Provence. E se ao invés dessas ervas pegarmos salsa, cerifólio, cebolinha e estragão, mesmo que cortadas grosseiramente, serão as finas, fines erbes.
E o que dizer do nosso refogado do dia a dia que na tradicional Itália é o ragu e na elegante França é o ragoût? Não que não lance mão destas expressões em meu dia-a-dia da cozinha e até na descrição dos pratos de cardápios que crio. Os uso talvez para parecer mais chef?
Com o peso de ser chef, vem a obrigação de decorar mais algumas tabelas e versar expressões e palavras usuais para o francês, italiano ou inglês. E, no afã de minhas pesquisas, me deparo com termos que não consigo, nem usando minha mirabolante imaginação, ter noção do que se trata. Em meio a uma receita em francês: “ajouter lardon”? “Ajouter” é fácil, básico no francês: acrescentar, juntar. Ótimo, meio caminho andado!“Lardon”???? Qu’est-ce que c’est????
Não há dicionário que diga o que é “lardon”, e a receita vai para o baú dos casos insolúveis, ou tenho que recorrer a amigos que são chefs, mais que eu! Hoje mesmo precisei saber o nome de uma membrana que envolve o estômago de bovinos e suínos que é usada para dar forma a alguns cozidos com carne picada ou moída, e também para umedecer e dar sabor.
Tecnicamente é o peritônio, no usual dos açougueiros, membrana de gordura, e como falar disso como um chef? Crépine.. santa ignorância! Outros termos se tornaram tão usuais que até cozinheiros de botecos sabem o que é e muitas vezes arriscam até a criar receitas.É o caso da mousse que já entrou até no dicionário da língua portuguesa como musse de tão brasileiro que é.
Mas musse que é mousse tem que ser leve e aerado, afinal mousse no dicionário da língua francesa é espuma, e encontramos alguns criados por chefs que não são de botecos que mais parecem sabão em pedra do que espuma!
Diante de todas essas expressões a serem decoradas para ser chef, fico com a alcunha de cozinheiro mesmo. Cozinheiro André me basta. E para encerrar: consultei meu amigo, este sim um chef, o chef José Hugo Celidônio, que esclarece que o peritônio na linguagem gastronômica é crépine. Quanto ao lardon, é o toucinho cortado em cubos para dar mais sabor a sopas, ensopados e saladas!