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A intolerância, a intolerância!!! por André Vasconcelos
Entre tradição, sabor e ativismo, um debate que vai além da cozinha

O direito de consumir um alimento pode coexistir com o respeito aos animais e ao planeta? Um debate que envolve história, cultura e escolhas. (Foto: Divulgação)

Publicado em 10/04/2025

Tempos confusos esses que vivemos: cada vez é mais fácil o acesso a informações e cada vez mais tem-se menos conhecimento: tudo é frugal, tudo é passageiro, tudo tem como lastro a internet que cria falsas verdades e mentiras reais. 

Criam-se grupos em redes sociais, ONGs e até religiões para defender ideias e opiniões, e em nome delas, fazem manifestos, atentados, protestos e até guerras. Tive a infelicidade de presenciar, estupefato, um desses protestos onde o foie gras era o alvo, um protesto de um desses grupos radicais e intolerantes que acusam de especismo* todos que não pensam e agem como eles. 

Ativistas contra a crueldade da alimentação nos dias de hoje e contra o direito de um restaurante cozinhar o que eles não querem que seja servido. Será que sabem que essa iguaria é conhecida e apreciada há mais de cinco mil anos? Os egípcios já caçavam gansos e outras aves migratórias antes do inverno, quando estavam superalimentadas para alçar grandes voos em busca de terras mais quentes para reproduzir, tornando sua carne muito mais saborosa. 

Na Roma de Horácio, gansos brancos eram alimentados com figos, ficatum em latim, para conferir textura amanteigada e sabor adocicado ao fígado da ave, aliás, o nome fígado, o órgão, vem de figo, a fruta, exatamente por essa prática milenar. Hoje essa engorda no cativeiro, a gavage, dura duas ou três semanas antes do abate. 

Ativistas alegam que esse processo é cruel, assim como a caça predatória também era, prática tal qual é a pesca das tainhas que saem das lagoas para desovar em mares mornos e são ‘caçadas’, pois é a época em que sua carne é mais tenra e suas ovas estão maduras, prontas para procriar. 

Não sou um defensor do foie gras, sou um defensor do direito que as pessoas têm de consumir foie gras, assim como têm direito a comer proteína de soja, soja que é a causadora de grande parte do desmatamento da Amazônia. Sou defensor de comerciantes, e sou um deles, do direito de trabalhar, dos que lutam para sobreviver diante de uma crise criada por governos corruptos e incompetentes e que incompreensivelmente tem seguidores. 

Sou defensor de direitos respeitados e não só de obrigações impingidas em forma de impostos. Legalmente não existe alimento que não possa ser servido em um restaurante. Em São Paulo proibiram o consumo do foie gras, o que só fez propaganda de algo que poucos conheciam e só fez aumentar seu consumo. Provavelmente temos agora traficantes de foie gras que trazem, na surdina da noite, fígados gordos escondidos sobre os forros de malas Rimowa para entregar sorrateiramente a chefs de cozinha sem coração que não se importam com a vida dos gansinhos órfãos que choram a falta do papai ganso ou da mamãe ganso! 

E se analisarmos friamente, qualquer alimento produzido em grande escala de alguma maneira é cruel: desmata, polui, mata, escraviza, destrói.... A única forma politicamente correta de nos alimentarmos é voltar a sermos nômades ou produzir tudo o que comemos, respeitando a sazonalidade dos produtos, pois tomates não nascem o ano todo, tomates só no verão, assim como morangos só no inverno.

É a lei da natureza e deve ser crueldade forçá-la a produzir o tempo todo só para aplacar a arrogância de cada um comer o que quiser a hora que quiser. O chef René Redzepi, consagrado chef que ostenta três estrelas Michelin e alguns títulos de melhor restaurante do mundo, apresenta uma série que explora os principais alimentos que construíram a sociedade e são essenciais à nós, seres “ditos” humanos: banana , café, milho, carne de porco, arroz, sal e atum! A cozinha desse chef, como de outros renomados como Dan Barber, San Kass e April Bloomfield valoriza produtos locais e sazonais, que são as estrelas de seus cardápios. 

Mas algumas colocações de Redzepi marcam pelo antagonismo. O episódio que apresenta o atum, especificamente a pesca da costa da Espanha, a tradicional almadrava, que consiste em um labirinto de redes onde o peixe fica encurralado e é abatido por um tiro de ar comprimido. Esse peixe sai da costa da Espanha, segue para o centro de distribuição no Japão, e é servido na mesa de restaurantes elegantes em todos os lugares do mundo, em alguns casos, em 48 horas após o seu abate! 

Qual o custo para o planeta desse processo??? 

A arrogância gastronômica está entre os principais motivos da destruição do planeta! 

Cruel não é unicamente a forma de criar nossas iguarias, e também a forma que as conservamos, transportamos e servimos. Poderia passar dias escrevendo sobre antagonismos gastronômicos, porém, além de enfadonho, não acho que mudaria a percepção que cada um tem da alimentação. Mesmo acreditando que ninguém tem direito de decidir como cada um vive, ama, veste, transa e come, o respeito ao planeta, a natureza e aos processos é fundamental para a sobrevivência de todas as raças! “A liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro”, sem intolerâncias.


*especismo - Espécie + ismo é o ponto de vista de que uma espécie, no caso a humana, tem todo o direito de explorar, escravizar e matar as demais espécies por serem elas inferiores. É a atribuição de valores ou direitos diferentes a seres dependendo da sua afiliação a determinada espécie.

 

 

 

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Sobre o autor

André Vasconcelos

Cozinheiro raiz e autodidata, hoje no comando de sua Cozinha Singular Eventos e d'O Vilarejo Hospedaria e Gastronomia, onde insumos e técnicas são a base de cardápios originais e exclusivos... e aprendiz de escritor também!


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