O país que não celebra a superação, por Vinicius Lummertz
Por que o Brasil não cultua a superação como valor estético, moral e cultural? Por que nossas novelas e filmes raramente retratam personagens da vida cotidiana dotados de virtudes heroicas — empresários, professores, engenheiros, bombeiros, agricultores, cientistas — como ocorre em tantas outras sociedades? Haveria, em nossa tradição, uma espécie de interdito contra a ascensão? Conseguimos imaginar Selton Mello interpretando Eduardo Saverin ou Wagner Moura dando vida a André Maggi?
Há mais de cinquenta anos, a televisão popularizou um modelo fixo: os ricos não trabalham, vivem de intrigas, futilidades e poses. Os pobres aparecem conformados, felizes “como estão”, vivendo em “comunidades” — termo reduzido a sinônimo de favela, ao contrário do que ocorre no resto do mundo, onde comunidade significa bairro, universidade, associação, igreja ou profissão. Essa estética achatou o imaginário nacional.
Nossas grandes obras literárias também avançaram pouco além da resistência à pobreza extrema. Vidas Secas ou Capitães da Areia mostram a luta pela sobrevivência, mas não a epopeia da ascensão. O herói brasileiro resiste, mas raramente constrói. Sérgio Buarque de Holanda já havia descrito o “homem cordial”, marcado pela afetividade e pouco inclinado à disciplina continuada do trabalho. Roberto Schwarz analisou nossas “ideias fora do lugar” e a dificuldade de legitimar a riqueza como fruto de mérito. Darcy Ribeiro identificou, no Brasil Novo, criatividade poderosa, mas travada por heranças coloniais. Psicanalistas e antropólogos apontam um dado profundo: em uma sociedade desigual, a ascensão individual muitas vezes é vista como traição ao grupo.
O caso do Barão de Mauá é emblemático. Filho de família humilde, tornou-se um dos maiores empreendedores do século XIX: banqueiro, industrial, pioneiro das ferrovias e da navegação a vapor. No filme Mauá – O Imperador e o Rei (1999), porém, sua trajetória de construção é eclipsada pelo desfecho de falência e isolamento. Em vez de herói nacional, Mauá foi transformado em mártir da ruína. O mesmo ocorreu com a cinebiografia de Eike Batista, que concentrou-se no colapso, sem retratar a dimensão de tudo o que foi construído — bilhões em ativos que mudaram setores inteiros.
No cinema americano, a narrativa é oposta. Citizen Kane (1941) retrata um magnata da comunicação: crítico, mas grandioso. The Founder (2016) mostra Ray Kroc, figura ambígua, mas cuja persistência levou o McDonald’s à escala global. The Social Network (2010) expõe conflitos éticos, mas ressalta a inventividade de Zuckerberg. Rocky (1976) consagrou o arquétipo do improvável que vence pelo esforço e disciplina. Outros títulos reforçam a epopeia da superação: Forrest Gump (1994), em que um homem comum atravessa a história pela perseverança; Giant (E Assim Caminha a Humanidade, 1956), que narra a saga de famílias pioneiras do Texas; ou There Will Be Blood (Ouro Negro, 2007), que dramatiza a expansão da indústria do petróleo.
Em todos, a causalidade é clara: esforço, sacrifício, trabalho e mérito podem transformar destinos. O público aprende que ascender é legítimo. No Brasil, ao contrário, o sucesso é visto com suspeita. Até no jornalismo isso se manifesta: se um crime envolve um BMW, a marca do carro vira manchete; se é um carro popular, não. O subtexto é sempre o mesmo: riqueza é culpa.
É claro que parte da elite brasileira falhou em devolver valor coletivo. Mas é igualmente verdade que milhões de brasileiros — empreendedores, engenheiros, agricultores, padeiros, lojistas, médicos, professores, cientistas — sustentam a prosperidade do país. São eles que criam cidades, empresas, tecnologias, exportações. Ainda assim, permanecem invisíveis em nossas narrativas. Não são personagens legítimos per se.
Uma sociedade sem histórias de superação acaba sendo uma sociedade sem bússola nem bandeira. Sem referências de ascensão pelo mérito, muitos jovens acabam acreditando que apenas a música ou o esporte permitem mobilidade social — e, mais atualmente, o crime. O Brasil fica prisioneiro de um imaginário que reforça a vitimização e a desconfiança.
Felizmente, uma nova geração começa a romper esse bloqueio. Startups, economia criativa, inovação tecnológica e empreendedorismo social já desenham outra narrativa: a da teologia da prosperidade individual. O desafio é transformá-la em superação coletiva.
E aqui está o ponto essencial: esses temas precisam ser discutidos em âmbito nacional. Precisam entrar na pauta da grande imprensa, das universidades, do parlamento, das instituições de formação de opinião. A ética do esforço, do resultado, da superação deve ser tratada como substrato intelectual e emocional de um país que precisa de motivação. Um país rico precisa de motivação.
O Brasil já possui milhões de histórias de superação individual. O passo seguinte é dar-lhes reconhecimento e convertê-las em ambiente coletivo, em projeto de sociedade. O esforço pessoal é a semente; a transformação em ethos nacional é a colheita. Sem isso, continuaremos a negar nossos próprios construtores. Com isso, poderemos reencontrar a grandeza.
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- A transformação pela educação, por Octávio Lebarbenchon
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Sobre o autor
Vinicius Lummertz
Ex-Ministro do Turismo, ex-Secretário de Turismo e Viagens do Estado de São Paulo, ex-Secretário de Articulação Internacional de Santa Catarina
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