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Uma crônica do passado, por Luzia Almeida

Entre memórias e ficção, a literatura revela o retrato da desigualdade que atravessa gerações no Brasil. (Foto: Pixabay)

Publicado em 22/08/2025

O livro de crônicas “Nu, de botas” de Antonio Prata, publicado em 24 de outubro de 2013, apresenta uma crônica do passado. Um passado que teima em não deixar o tempo presente: “Vanda vinha do interior de Minas Gerais e de dentro de um livro de Charles Dickens. Sem dinheiro para criá-la, sua mãe a dera, com seus sete anos, a uma conhecida”. Esse negócio de dar os filhos é uma tragédia!... Além de Dickens temos também o inesquecível Victor Hugo com sua sofredora “Cocette” para fazer trio com o autor. O mundo está cheio de miseráveis!...

A crônica “Gênesis” de Antonio Prata confirma um passado sempre presente: “Ao recebê-la, a mulher perguntou o que a garotinha gostava de comer. Anotou tudo num papel. Mal a mãe virou as costas, no entanto, a fulana amassou a lista e, como uma vilã de folhetim, decretou: “A partir de hoje, você não vai mais nem sentir o cheiro dessas comidas!” / Vanda trabalhou lá até os quinze anos, quando recebeu a carta de uma prima com uma nota de cem cruzeiros, saiu de casa com a roupa do corpo e fugiu num ônibus para São Paulo”. Fugir é o verbo da resistência, do enfrentamento e da liberdade. Vanda em posse de uma nota de cem cruzeiros resiste, enfrenta e abraça a liberdade que lhe sorri. Há pessoas e personagens. Personagens que são tão representativos de situações reais que nos fazem esquecer da ficção da página. Vanda era essa personagem, era um tipo de “Cocette”: “Todas as vezes que eu e minha irmã a importunávamos com nossas demandas de criança mimada, ela nos contava histórias da infância de gata-borracheira, fazia-nos apertar seu nariz quebrado por uma das filhas da “patroa” com um rolo de amassar pão e nos expulsava da cozinha: “Sai pra lá, peste, e me deixa acabar essa janta”.”

O passado histórico com resquícios de escravidão visto na crônica são as atitudes da “fulana”: um tipo de Dona Inácia de Monteiro Lobato que acomete as crianças pobres que perderam o direito de serem criadas pelos pais... isso também é um tipo de escravidão, uma ferida que jamais cicatrizou. E o rolo de amassar pão é o chicote de uma época que permanece atrás de uma máscara de civilidade. O nariz quebrado de Vanda e todos os sofrimentos por que passou não são passíveis de esquecimento. Não há como esquecer a barbárie que sofreu um povo menos favorecido. E a Literatura é um out door que encara a sociedade brasileira apresentando uma proposta de ajuste e de equidade.

A gata-borracheira tinha a fantasia a seu favor, um tempo de meia noite, sapatinhos de cristal e uma carruagem que a aguardava na porta do palácio. Vanda, com o nariz quebrado, não tinha uma fada madrinha, tinha uma prima e uma carta. A nota de cem cruzeiros é mais que uma nota, é um passaporte para quem o verbo fugir tinha cor de urgência. Neste contexto de maus tratos, o verbo fugir não é sinônimo de covardia, é verbo-valentia, é garantia de literatura.

Fugir é preciso para que haja histórias de enfrentamento, mesmo que a nota seja real.

 

 

 

 

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Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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