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“O nariz” de L. F. Veríssimo e as algemas inventadas, por Luzia Almeida

O nariz de borracha simboliza a primeira algema que desafia a lógica e a convivência social. (Foto: Pixabay)

Publicado em 17/08/2025

“Era um dentista respeitadíssimo. Com quarenta e poucos anos, uma filha quase na faculdade. Um homem sério, sóbrio [...]. Um dia, apareceu em casa com um nariz postiço”. É desse modo que começa uma das crônicas mais interessantes de Luís Fernando Veríssimo. A crônica “O nariz” é uma crônica psicológica porque revela as camadas do comportamento das pessoas: seus labirintos e suas algemas inventadas.

Inventar uma algema não é difícil: o personagem (um dentista respeitadíssimo) resolveu usar um nariz postiço e causou tumulto na família e por quê? Porque o comportamento dele fugia do padrão, fugia da normalidade. As pessoas podem usar qualquer coisa postiça dentro de um contexto que permita o uso, mas o personagem não queria entender isso:

“— O que é isso? — perguntou a mulher depois da salada, sorrindo menos.

— Isto o quê?

— Esse nariz.

— Ah, vi numa vitrine, entrei e comprei.

— Logo você, papai...”

Diálogo difícil!... “Logo você, papai” é ultrajante!... É a porta do labirinto por onde o personagem entra sem ideia de localização de saída. O grande problema dele é que entrou no labirinto sozinho, a mulher “passou a metade da noite olhando para o nariz de borracha. De madrugada começou a chorar baixinho”.  A solidão da mulher diante do comportamento do marido alcança o nível da dor. Atitudes desprovidas de senso comum podem gerar lágrimas nos outros: o personagem pretendia que todos aceitassem o seu nariz postiço, mas todos tinham a vida organizada diante de um padrão que excluía um nariz postiço, exceto num contexto de baile de carnaval ou numa brincadeira eventual de festa de aniversário ou em alguma coisa no gênero do entretenimento como teatro etc., todavia o lar não admitia um nariz diferente e o personagem teria que acatar a decisão da família, não acatou: endureceu, desprezou a lógica e ficou sozinho.

A crônica “O nariz”, na verdade, é uma grande metáfora. É realmente surpreendente como as pessoas gostariam que aceitássemos os seus narizes. É surpreendente os debates que ocorrem por conta de tantos narizes que são colocados e vistos como uma “normalidade”. Um nariz postiço é uma nudez maquiada: lembra-me a história de Hans Christian Andersen “A roupa nova do rei” que apresenta um rei nu desfilando e apenas uma criança ousa dizer a verdade. E na crônica do Luís Fernando Veríssimo a filha ousa questionar o pai:

“— Como é que ela vai sair na rua com um homem de nariz postiço?

— Mas não sou “um homem”. Sou eu. O marido dela. O seu pai. Continuo o mesmo homem. Um nariz de borracha não faz nenhuma diferença.”

Faz sim!... Um nariz de borracha também é a primeira algema de uma série. Aceitar a primeira algema é concordar com a série toda e muita gente há que não nasceu para fingir que está vendo uma roupa nova quando a nudez é mais do que explícita.

Portanto, tendo em vista a possível quebra familiar, o melhor a ser feito é passar longe das vitrines...

 

 

 

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Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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