“O espelho” de Machado de Assis e a segunda alma, por Luzia Almeida

O conto é um gênero textual breve, mas é breve pela economia de palavras e não por conta dos temas e da profundidade de expressões que nos acometem. E quando se trata de um conto de Machado de Assis a brevidade se perde no abismo do talento do escritor ao trazer reflexos de identidade. Literatura, identidade e profundidade: eis a tríade machadiana.
“O espelho” é um conto que apresenta esta tríade, é um conto pra ser lido várias vezes: primeiro, pelo contexto histórico-social da época (escravidão); segundo, pela temática proposta (a alma humana) e terceiro, porque é um conto dele (ler Machado de Assis é a excelência da metonímia). É um conto pra ser lido várias vezes por conta desta alegria nacional de saber que o autor é brasileiro. Machado de Assis é verde e amarelo.
A leitura desse conto é particularmente instigante: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro [...]. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação [...]. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira: as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja”. É uma leitura instigante porque o personagem Jacobina apresenta para os amigos um “esboço de uma nova teoria da alma humana” e, após traçar considerações sobre essa teoria (a duplicidade da alma), ilustra a sua nova teoria com um caso que passou com ele mesmo quando se tornou alferes: “— O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primeira cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade”. Essa percepção que ele observa sobre a alma exterior que domina a interior é uma manifestação de equilíbrio que ele consegue fazer na maturidade. Na época do cargo de alferes da guarda nacional ele contava com 25 anos.
Ler um conto com um tema referente à alma humana não é fácil, não estamos falando de economia ou de educação, estamos falando de um tema que faz referência a algo abstrato, imaterial. Gostaria de saber os caminhos ou percepções que levaram nosso escritor a escrever sobre isso: “Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa”. Ao traçar um duelo entre alma interna e alma externa (homem x alferes), o autor conduz a narrativa considerando gradações: “As dores humanas, as alegrias humanas se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era totalmente outro [...]. Era exclusivamente alferes”. E ser totalmente alfares é a desumanização do sujeito, é a vitória da alma externa.
Florbela Espanca poderia entender perfeitamente esta mudança, pois conseguiu definir perfeitamente o “Fanatismo”: “Minha alma, de sonhar-te, anda perdida / Meus olhos andam cegos de te ver! / Não és sequer razão de meu viver, / Pois que tu és já toda a minha vida!”.
Esse encontro de conto e de poema é uma locução emocional que somente os ultrarromânticos poderiam entender, ou, aquelas pessoas que se perderam à procura da segunda alma.
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Sobre o autor

Luzia Almeida
Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação
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