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“A velha contrabandista” e a catacrese da ilegalidade, por Luzia Almeida
O texto mistura cotidiano, humor e reflexão sobre normas e comportamentos humanos

A personagem foge aos padrões de idade, gênero e comportamento esperados, gerando surpresa e reflexão. (Foto: Pixabay)

Publicado em 05/09/2025

“Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da alfândega — tudo malandro velho — começou a desconfiar da velhinha”. A crônica do Stanislaw Ponte Preta marca uma época na vida da gente: a época da coleção “Para gostar de ler”. E quando se começa a gostar de ler não tem fim. E lendo a gente aprende.

Associamos as lambretas e as motos com a mocidade, e aí, na crônica, já temos uma velhinha montada. Associamos o contrabando com homens maus, perdidos; e na crônica temos uma velhinha: a construção do humor da crônica já começa com uma personagem que foge ao padrão convencional de tempo, de gênero e de conduta de que estamos acostumados. Humor é assim!...

A crônica apresenta o cotidiano numa alfândega: pessoas querendo passar com contrabando ou sem pagar imposto, mas uma velhinha!?... Quem é que vai desconfiar de uma velhinha? O pessoal da alfândega desconfiou: “— Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?”. A pergunta é legal, mas será que a idade da mulher autorizava uma fiscalização? A idade de uma “vovozinha” tem muito valor na nossa sociedade. Mas o pessoal da alfândega tinha obrigações com o Estado e ela teve que responder: “— É areia!” e era areia de verdade. E ela “sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais outros, que ela adquirira no odontólogo”.

Uma alfândega é uma escola: esta metáfora se realiza a partir das estratégias que se apresentam diante dos olhos daqueles que lidam com o comportamento humano e não são psicólogos, são pessoas (muitas delas) que não sabem jogar xadrez. E uma dama pode estar acima de qualquer suspeita quando uma verdade é comprovada: “o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia”. O contrabando está associado às coisas ilícitas como drogas e armas. O transporte de lambreta não é ilícito, mas é necessário que se pague o imposto do produto, se não houver o pagamento ocorre o descaminho. Assim, o contrabando está relacionado ao transporte de produtos ilícitos e o descaminho, à falta de pagamento de imposto de produtos lícitos.

“Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço. [...]. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista”. Sim, ela era contrabandista, mas por falta de uma palavra que definisse o seu ato ilegal, como uma cadeira que tem pernas e braços por falta de termos próprios. A catacrese, que não tem o valor de uma metáfora, é uma figura de linguagem que nos ajuda a entender os atos ilegais que ocorrem numa alfândega.

O fiscal sucumbe: “— Eu prometo [...]. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias?”. Com 40 anos de trabalho, ele vai se aposentar com uma velhinha no histórico funcional. A crônica “A velha contrabandista” é uma narrativa de flagrante de ilegalidade. Infelizmente, no Brasil, há muitas “velhinhas”, velhacos, golpistas de toda sorte e fiscais que precisam aprender a jogar xadrez.

Saiba o que a velinha contrabandeava. 

 

 

 

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Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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