A Amiga Indesejada, por Denise Evangelista
Em um mundo acelerado, aceitar a finitude pode ser a chave para a felicidade verdadeira

“Sem a morte, não há lições; sem a morte não há fundo escuro contra o qual o diamante cintila.”
Clarissa Pinkola Estés
O contato que fazemos com a realidade da morte diz muito sobre como contactamos a vida. Que tipo de relação estabelecemos com a experiência de estarmos vivos? Como nos relacionamos com a sobrevivência, com as pessoas que fazem parte do nosso cotidiano, com as escolhas que fazemos ao acordarmos todos os dias, e como pensamos as nossas perspectivas de um futuro?
No Ocidente temos dificuldade em aceitar a ideia da impermanência. Além disso, a modernidade foi nos tornando progressivamente materialistas. Ficamos presunçosos. Pensamos que poderíamos ter domínio sobre a natureza explorando-a sem limites. Não é difícil compreender a dimensão biológica do conceito de interdependência entre todas as coisas. Sabemos que sem ar não há vida; que sem floresta não há chuva; que sem oceano limpo não há oxigênio; que o planeta esteve em equilíbrio porque dentro de limites de temperatura; que os ecossistemas sustentam a continuidade da vida. Mesmo assim, a ideia de dominação e exploração, na modernidade, foi sendo naturalizada. Ferimos a terra e poluímos o ar. Isso tudo, pensamos, iria nos garantir as condições de nos protegermos da grandiosidade da própria natureza e quiçá da morte. Pegamos o caminho errado. O conceito de interdependência, também se refere às relações afetivas. Nós precisamos de trocas amorosas para nos desenvolvermos com saúde e para nos mantermos vivos.
Caminhamos para a nossa própria infantilização, ao cercear, em nós mesmos, nossa condição humana de transitoriedade e finitude. Não admitimos a realidade da morte, como se não a vendo, ela deixasse de existir. Sob outro aspecto, a inevitabilidade da morte fere a crença que tentamos construir, de que seríamos, especialmente depois da revolução industrial, uma espécie de super-homens. E quando estamos focados em prolongar a juventude, acreditamos que temos o poder de controlar ou remediar a efemeridade das coisas. Isso não quer dizer que não possamos reverter alguns processos e controlar agentes que abreviam a vida. Entretanto, já nos alertava o cineasta George Cukor: “Não há beleza capaz de competir com a consciência e a aceitação de quem realmente somos.” (Loren, S., Ontem, Hoje e Amanhã, 2014). Neste sentido, podemos pensar que enquanto não aceitarmos a nossa condição de seres transitórios e a morte como realidade inevitável, estaremos cometendo um erro grave, o de nos identificarmos excessivamente com o mundo que criamos, desconectados do mundo que nos foi concedido. Nossa percepção é capaz de alterar certos valores, e o pé direito, nessa perspectiva, torna-se maior do que o céu. Apegamo-nos às pessoas e as coisas como num mesmo mecanismo de negação da morte, pelo viés da posse, porque acreditamos que somos aquilo que possuímos, que seguramos. Mas a vida é para ser bem vivida, não dá para guardá-la em cofres.
O limite que a morte nos impõe coloca em xeque o modo como somos no mundo; e a felicidade pode ser um bom termômetro; não a felicidade instantânea e volátil, dada na superfície, mas a que nos nutre em profundidade. Aquela que favorece a troca efetiva e afetiva entre um ser humano e outro ser humano, entre ele e sua própria natureza, entre ele e a comunidade, entre ele e a Terra, entre ele e o Universo.
Há um agravante insidioso no modo como estamos experimentando a vida. A velocidade que imprimimos nos nossos dias, guiados pelos relógios externos e exigentes da produtividade. Como estar presente se estamos sempre correndo? Como sentir o cheiro do café, ver se faz sol ou se chove, olhar nos olhos dos nossos filhos se estamos sempre apressados? A tecnologia nos prometeu tempo, mas nos entregou pressa. Estamos virando máquinas solitárias e nos desconectando das necessidades reais do corpo — que não está sempre igual, e daquilo que não é substancial, mas é essencial à nossa vontade de viver: as relações de afeto com o outro. Como sugeriu o filósofo e escritor nigeriano Báyò Akómoláfé, em tempos urgentes precisamos desacelerar. Ser capaz de estar presente é condição imperativa para nos sentirmos vivos. Distúrbios psíquicos como a depressão ou a ansiedade não favorecem a nossa presença. Em determinados momentos, vamos precisar de cuidados, para podermos nos atualizar e exercitar a capacidade de estarmos presentes, e então conseguirmos experimentar, com prazer ou não, a experiência irrepetível do presente. Na dimensão social, somos testemunhas de distúrbios políticos que almejam tornar admissível práticas de total desprezo pela vida. E contra as quais precisamos resistir.
Nossa indesejada amiga, a morte, nos desperta o senso de raridade, nos diz dos minutos que não voltam, sopra nos nossos ouvidos o valor do que realmente tem valor.
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Sobre o autor

Denise Evangelista Vieira
Psicóloga formada pela UFSC e em Artes Cênicas pela Udesc. Escreve sobre o universo humano. Quem somos e em quem podemos nos tornar? CRP 12/05019.
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