Viajando entre linhas...
Em minha vasta biblioteca, eu viajo a cada novo cardápio sugerido por clientes
“Oh, bendito o que semeia livros!
Livros à mão cheia, e manda o povo pensar.
O livro, caindo n’alma,
É germe - que faz a palma;
É chuva - que faz o mar!”
Castro Alves, o “Poeta dos Escravos”, declamou o livro como poucos. Monteiro Lobato, apesar de não acreditar em nada por achar tudo muito duvidoso, certamente acreditava em livros quando afirmou: “- Um País se faz com homens e livros! ”. Até as páginas mais amareladas que entremeiam capas empoeiradas e puídas pelo passar dos anos, podem nos fazer viajar através do tempo e do espaço, indo desde o Império Romano até a Los Angeles castigada pela chuva ácida no ano de 2.052.
Viajar ao Centro da Terra ou Cinco Semanas em um Balão é muito fácil por Vinte Mil Léguas Submarinas, ou em páginas que dão umA Volta ao Mundo em Oitenta Dias sob o comando de Robur, o Conquistador, como nos deixou claro o francês Júlio Verne, maior prova que para viajar basta ter um livro à mão e a mente livre para romper as fronteiras da imaginação. E, segundo outro grande cérebro viajante, Albert Einstein, “a mente que se abre a uma nova ideia jamais volta ao tamanho original”, portanto, a cada livro que se lê, maior se torna a biblioteca do nosso pensamento.
Nessa viagem, eu viajo a cada novo cardápio sugerido por clientes.
Dentro da literatura gastronômica encontramos alguns exemplares que vão além de livro de receitas: nos mostram a alma de uma região e nos apresentam técnicas que são toscas, mas que apresentam um resultado final surpreendente. É o caso de uma publicação de dois jornalistas ingleses que descreve uma viagem com amigos à Toscana.
O aroma do louro, a cremosidade do queijo mascarpone, a textura da grande variedade de feijões, a valorização de miúdos de cordeiro, ovelha, vitelo e até galinha, fazem desta região, a Toscana, uma das mais ricas culinárias que conheço. Ao preparar uma perna de ovelha, este livro sugere que esta seja torrada rapidamente somente com sal em um braseiro produzido com lenha de loureiro. Depois, a carne deve “descansar” na parte mais alta da “churrasqueira”, envolta em papel pardo durante umas boas horas.
Algumas técnicas arcaicas podem migrar para nossas cozinhas lançando mão de adaptações que nos remetem à infância de acampamento. Na tosca adaptação para o meu mundo real, sobre um braseiro feito com carvão arrumado em uma grelha entre tijolos no meu quintal, bem vigiada para que meus adoráveis cães não abocanhassem a minha experiência, coloquei o pernil e aticei as brasas por alguns minutos com muitas folhas de louro, levando esta perna de ovelha depois de tostada a um cartoccio de papel alumínio com dentes de alhos e algumas ervas. Nunca comi uma perna de ovelha na Toscana, mas a alma deste prato conheci depois da ovelha cozida algumas horas na parte mais alta do meu braseiro improvisado.
Deixando a Toscana e viajando duas prateleiras acima da minha biblioteca, e um pouco à direita, ainda estamos na Itália, porém na Lombardia que abriga Cremona... a Cremona da mostarda. Na França, mostarda é uma pasta condimentada que pode ser a amarronzada de Bordeaux, a clássica Dijon ou à l'ancienne com seus grãos amassados grosseiramente com vinagre. Na Cremona Italiana, ela é feita em casa e largamente utilizada no Natal. É uma compota que nada tem de cremosa como sugere seu nome ou sua parente francesa. É uma combinação de frutas na calda aromatizada com grãos de mostarda e, muitas vezes, com lascas de trufas brancas.
Seguindo a viagem entre linhas, de volta à mesma prateleira, vou de Portugal à Suécia, passando pelo Japão e Jalapão. O chambaril do Jalapão é um primo-irmão do ossobuco, tão cultuado na cozinha italiana: um ragu feito com a canela do boi cozida lentamente...
Não muito distante, entre prateleiras, conheço o mundo e seus sabores com as letras espalhadas em páginas encadernadas que me fazem viajar e conhecer novos sabores. Não viajando somente entre pratos, mas através do tempo e do espaço, conhecendo culturas, vivendo aventuras, derramando lágrimas e dando gargalhadas. Para cantar em verso e prosa, o que é para mim viver um livro, teria que escrever um livro, e não somente este texto que, mais uma vez, se alongou demais.
Leiam mais e... bom apetite!