Um brinde ao vinho brasileiro, por André Vasconcelos
Hoje vou falar de vinhos, de vinhos brasileiros festejados no novo livro da Roberta Malta Saldanha, com 27 cozinheiros de 27 estados em 27 receitas harmonizados com 27 vinhos brasileiros... entre eles, eu!
Um brinde ao vinho brasileiro, um brinde à escritora que soube tão bem explanar esse alimento liquido em todos seus detalhes e harmonizações!
Salute! dizem na Itália... Santé! na França... Proost! para os holandeses... os suecos saúdam com Skäl!, caveira, já que seus antecessores, os vikings, tinham o hábito de usar os crânios de seus inimigos como canecas na hora do brinde... e para nós: tim-tim!
Nada mais vital que brindar quando temos na taça um bom vinho! Não estou me referindo aos vinhos de boutiques, com seus goles ligeiros em tempo e mínimos em volume, onde análises (visual, olfativa e gustativa) nos dissertam sobre aromas e sabores que ficam a léguas do parco conhecimento de muitos, inclusive dos meus. Falo dos vinhos de sabores e aromas que nos fazem sorrir ao degustá-los.
Sejamos como os gregos que, na antiguidade, festejavam e erguiam as taças oferecendo simbolicamente a bebida a Dionísio, e por vezes lancemos mão do costume dos romanos, oferecendo ao deus Baco um tanto de bebida derramada no chão ou na mesa, hábito adotado por muitos brasileiros ao “dar um gole ao santo”!
Aliás, a palavra “brinde” vem de uma expressão do circunspecto do povo alemão: “ich bring dir’s”, isto é, “bebo por ti”!!
Um brinde... um grande brinde ao vinho brasileiro!
Um vinho que superou a lenda de que no Brasil nunca teríamos bons vinhos, uma entre tantas lendas que acercam sua história desde que, segundo a lenda, Noé, o da Arca, quando em terra firme após meses de diluvio, cultivou as primeiras vinhas da história e com elas fez o primeiro vinho, tomou o primeiro porre, e, certamente, sofreu com a primeira ressaca! O vinho devia ser tão ruim quanto os de garrafão do Brasil nos anos 1980 que faziam parte do meu cardápio de estudante universitário.
Começamos aqui, em terras tupiniquins, cultivando uvas trazidas por Brás Cubas logo após a descoberta do Brasil, provavelmente cepas da sua região natal, o Douro. A princípio tentaram cultivar na Serra do Mar, próximo ao que é hoje a cidade de Santos: úmido e chuvoso e com a pungente Mata Atlântica dominando... um fracasso! A serra paulista não tinha talento para ser o que seria um dia as serras gaúcha e catarinense!
A segunda tentativa, bem-sucedida, foi no planalto Piratininga, onde as videiras eram abundantes em frutos e produziam um vinho de baixa qualidade, mas melhor que os vindos de Portugal mal armazenados nas naus e sofrendo todos os tipos de intempéries de uma viagem que cruzava o Oceano Atlântico no século XV. Com esse pensamento e muitos experimentos, vinhedos surgiram por toda colônia, de Pernambuco a região de Tape, nos pampas do sul.
Diz outra lenda que a necessidade de produzir vinhos no novo continente era coisa dos jesuítas, pois sem ele, o vinho, não tinham como realizar as missas, afinal, o vinho é o sangue de Cristo na celebração católica... mas nessa lenda, nem Deus bota fé!
E entre erros, acertos e proibições – sim, a produção chegou a ser proibida por D. Maria I, “a Louca”, em um ato de loucura - o vinho chega ao século XX tímido e já com fortes influências dos imigrantes italianos.
A chegada das grandes multinacionais de bebidas nos anos 1970 e a força das cooperativas regionais foram vitais para a indústria vinífera começar tomar forma e crescer! Um brinde a essa mudança!
Um brinde à luta de famílias de imigrantes que fizeram da Serra Gaúcha a primeira D.O.C. do Brasil, servindo de exemplo e motivando o cultivo de uvas viti-viniferas por regiões diversas em quase todo território nacional, lotando de variedades em rótulos carregados de história, sabores e aromas... o vinho brasileiro não é uma lenda, é um orgulho! Das altitudes no solo catarinense à beira do Rio São Francisco, o vinho brasileiro é uma linda realidade.
O Brasil em pouco mais de vinte anos, alcançou um padrão de qualidade em seus vinhos que outras regiões levaram décadas, e até séculos, para alcançar... um brinde a isso!!!
Porém, das uvas varietais vindas da Europa, surgiam vinhos que estavam acostumados com cozinhas clássicas e elegantes, e nossa cozinha com sabores rústicos até então só harmonizavam com cauim e cachaça!
Sai de cena a terrine de foie gras e entra a buchada de bode; o macarron dá lugar ao brigadeiro; ao invés do confit de canard, o xinxim de galinha; o mil folhas aparece reinventado nas linhas circulares do bolo de rolo! Como harmonizar vinhos de origem nobre com receitas toscas, brejeiras, indígenas, pretas, de imigrantes, ou uma mistura de tudo isso no panelão culinário de um novo mundo com temperos exóticos e inusitados?!
Simples: experimentando, arriscando, buscando na memória gustativa referências que encontramos nos vinhos! Experimentar é fundamental, e um experimentar sem preconceitos, e muito menos pré-conceitos, é a única formal de nos alçar a grandes e prazerosas descobertas!
O frescor do coentro marcante nos pratos do litoral nordestino valoriza a leveza do sauvignon blanc, a acidez do tucupi ganha sabor com um o exótico vinho laranja vindo de Santa Catarina, a complexidade da feijoada combina um shiraz do Vale do São Francisco, e o simples “baixaria”, prato típico do Acre, tem no merlot da serra gaúcha, o casamento perfeito.
Cada vinho tem uma expertise, assim como cada pessoa tem um paladar, cada prato tem uma personalidade, e, como diz um ditado popular: cada um é cada qual e cada qual é cada um!
Quando tomamos vinhos no nosso dia a dia, não atentamos a isso, e nem devemos, mas descobrir que o vinho pode aumentar o prazer de saborear um prato, é revolucionário, é uma mudança de hábito que traz mais prazer a cada gole e a cada garfada.
Há muito tentam escrever um livro definitivo sobre o vinho nacional, sua história, sua evolução e suas harmonizações, e esse que está em suas mãos, não é esse livro: a história do vinho no Brasil está apenas começando e nada nela é definitivo, cada nova safra vem com um novo leque de sabores e de harmonizações, cada novo rótulo conta uma nova estória, e a cada novo brinde escrevemos um pouco dessa evolução!
Um brinde ao vinho nacional!
Um brinde a todos que escreveram essa história e aos escritores que registraram com mestria essa evolução! Tim-tim!
Sobre o autor
André Vasconcelos
Cozinheiro raiz e autodidata, hoje no comando de sua Cozinha Singular Eventos e d'O Vilarejo Hospedaria e Gastronomia, onde insumos e técnicas são a base de cardápios originais e exclusivos... e aprendiz de escritor também!
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