Tirando poeira, por André Vasconcelos
O ritual de preservar memórias literárias e culinárias
Alguns serviços de “dona-de-casa” são verdadeiros sacrifícios, mas inevitáveis. Sou um aficionado por leitura em todas as formas que ela se apresenta: jornais, livros, revistas, recortes de embalagens e até mesmo bulas.
Mas esse amontoado de papeis e letras rima sempre com poeira, traças e mofo.
Vez por outra, precisam passar por uma limpeza minuciosa, e, para mim, é um trabalho que não se pode confiar em ninguém, afinal, ali vive minha memória.
Nesta semana, por muitas contingências, fui obrigado a arrumar minha biblioteca, e munido de máscara, creme para as mãos, um superaspirador e muito pano limpo, cumpri a obrigação de um homem apaixonado, amante das letras.
Quem tem biblioteca, ou mesmo uma estante de livros, sabe que ali se revela a história, o caráter e a personalidade dos habitantes da casa.
Alguns se atêm a astrologia, outros a religião, eu acho mais fácil analisar pessoas pelos seus livros.
Livros organizados e limpos em bibliotecas projetadas por decoradores com exemplares originais de Cervantes, Proust e Shakespeare, além de livros de museus internacionais, e invariavelmente livros fotográficos da National Geographic e Helmut Newton, são geralmente incólumes, quase virgens, livros nunca folhados, pois a função de uma biblioteca assim é dar um ar intelectual a casa, não ser lida.
O que se lê é tão notadamente importante que alguns criam a biblioteca que realmente gostariam de ter lido e gostado, mas como não houve tempo, ali estão!
A minha, como de muitos amigos, não é bem assim: algumas revistas estão com a capa solta, livros cheios de orelhas, tatuados com tinta de caneta marcadores já sem brilho, anotações nas margens que muitas vezes não fazem sentido: tudo lido.
E arrumar a biblioteca pode ser uma aventura única.
Quando começo a organizar as letras culinárias, o tempo para.
Recortes e mais recortes em álbuns montados por mim e por algumas tias que me deixaram essas preciosidades como legado.
Nestes livros-colagens vale tudo: receitas da revista Cláudia (desde 1961), do Suplemento Feminino (anos 1980 do Estadão), rótulos de latas de leite condensado, caixas de chocolate do Padre e até embalagem plástica do Açúcar União e Café Caboclo.
A certas revistas, que tenho toda coleção, recorro sempre para tirar qualquer tipo de dúvida: Gula, Sabor, Gourmet, Prazeres da Mesa e a excelente Gosto.
Mas os jornais podem surpreender na cozinha também: talvez o encarte Paladar do O Estado de São Paulo seja o melhor informativo gastronômico no Brasil até pouco tempo.
Alguns podem estranhar um cozinheiro de Bistrô depender de um punhado de livros e revistas comuns a cidadãos que não fazem parte do Olimpo da Alta Gastronomia!
Mas sou um mortal, cozinheiro autodidata que descobriu nestes papéis que o tomate concasse é um picadinho sem pele e semente, que brulée é queimar em francês e que “mis en place”, literalmente “posta no lugar”, nada mais é que a organização dos ingredientes e utensílios para preparação de uma receita... e não considero menos cozinheiros aqueles que lançam mão destas brochuras.
Chegou aos meus ouvidos certa vez, através de um cliente comum, o comentário de chef “amigo”: “o dia que parassem de publicar a Gula”, à época a única revista da área, “eu teria que fechar meu bistrô, pois só reproduzia as receitas publicadas.”
Na verdade, raramente reproduzo receitas, sempre dou meus toques pessoais, mas ainda acho mais válido reproduzir bem um prato que produzir um cardápio banhado com alho, couscous insossos e sobremesas estruturadas com gelatina.
Pratos clássicos, interpretações deles e reproduções ipsis literis, criações pessoais, adaptações de receitas, enfim, todos os experimentos vão sendo anotados e aos poucos se tornam um livro de receitas de autor.
Como em um livro de memórias, um livro de receitas é um “pathwork” de uma vida.
Enfeitamos alguns fatos e pratos, inventamos acontecimentos e ingredientes, reinventamos algumas estórias e reinterpretamos receitas clássicas, atualizamos roteiros banais e repaginamos cozinha caseira, enfim, a vida imita a arte... culinária.
E para ser livro de receitas tem que estar pintado com gema, com marcas de óleo, com páginas grudadas por massa de bolo, com medidas mal rabiscadas e remedidas, e principalmente, com nota para o resultado.
Em “O Não Me Deixes” de Raquel de Queiroz, ela conta entre “causos” e receitas, a estória da sua fazenda de infância, prosa com alma de poesia em uma cozinha caseira essencialmente brasileira, sertaneja, original.
“Carême”, de Ian Kelly, apesar de não ser um livro de receitas e sim a biografia do rei dos cozinheiros e o cozinheiro dos reis, apresenta uma receita de vida, vida de um órfão abandonado nas ruas de Paris do século XIX que se tornou o chef preferido na nobreza, da França à Rússia, aos poucos conquistou o mundo.
Assim como “O último chef chinês” de Nicole Mones, onde uma americana vive a luta de um cozinheiro chinês tentando voltar à origem da sua cozinha. Outro livro que luta para não ser de receitas, mas não consegue fugir disso, é o, para mim um clássico, “Em busca do prato perfeito” do Anthony Bourdain, que relutou para não ter mais um livro de receitas, e aos poucos se rendeu e lançou o “Afinal, as receitas do Les Halles”, um livro de receitas, enfim um livro de receitas.
Mas o livro dos livros de receitas é “A Cozinha de Paul Bocuse”!!!!!
Nesse livro do considerado o maior chef do século XX, ele enaltece os ingredientes tradicionais, procurando preservar seus sabores valorizados por molhos e temperos mais suaves, uma aula da simplicidade e da complexidade da cozinha mais festejada do mundo, a francesa.
São vários títulos de “livros de receitas” que posso citar, e muitos que para ser considerado um chef, um chef contemporâneo, teria que citar, mas acho que a maioria desses estariam mais a vontade na estante de livros de química ou de ficção, ou até no de literatura fantástica.
E por enquanto, enquanto não consigo compilar o “meu” livro de receitas, vou criando e recriando semana a semana na minha cozinha, sem medo de errar!
Texto por André Vasconcelos
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Sobre o autor
André Vasconcelos
Cozinheiro raiz e autodidata, hoje no comando de sua Cozinha Singular Eventos e d'O Vilarejo Hospedaria e Gastronomia, onde insumos e técnicas são a base de cardápios originais e exclusivos... e aprendiz de escritor também!
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