Que cheiro é esse?
Li em uma revista “científica”, na sala de espera de um consultório como tantos, uma pesquisa que afirma que não temos memória olfativa. Depois de tentar digerir essa afirmação absurda, concluí que provavelmente essa pesquisa foi obra de um desses pesquisadores que pesquisam tanto, tantas coisas, e tantas sem tanta importância, ou importância nenhuma, que poderiam pesquisar porque se pesquisa tantos assuntos sem importância! Não temos memória olfativa, diz a pesquisa!
Lamento por esses pesquisadores que não se emocionam com as lembranças trazidas pelo aroma doce do bolo de fubá saindo do forno ou o cheiro de canela no bolinho de chuva que nos remete às tardes chuvosas na casa da vó em uma infância que há muito se foi. E, ao degustarmos um vinho, não é através de recordações olfativas que encontramos os aromas ou os bouquets mais complexos? Concordo que alguns comentários chegam ao extremo, beirando o ridículo, como um publicado em uma obra especializada onde o sommelier “encontrou” em um vinho raro o aroma “do couro da bolsa de Marco Polo na volta da China”! Marco Polo voltou da China por volta do ano 1300!
E a tal bolsa de couro devia estar podre... ou o vinho estava! Isso não é memória olfativa, isso só pode ser efeito de alguma droga pesada! Segundo a engenheira química Sônia Corraza, o olfato é o único sentido que não passa pelo crivo da censura, pois antes de chegar ao cérebro vira impulsos elétricos, como um choque, e essa interpretação das substancias aromáticas está ligada à experiência pessoal, que pode causar saudosismo e emoção, pois “a sensação olfativa está ligada à emotiva”, diz a pesquisadora.
Ela é autora de “Aromacologia – uma ciência de muitos cheiros” e, para mim, traz uma colocação muito mais lógica que a afirmação feita pelos pesquisadores ingleses sem nariz e sem emoção. A memória olfativa é infalível em seus registros gastronômicos e emocionais: do café fresquinho ao cheirinho no pescoço do bebê, do bacon refogando alho e cebola à colônia suave que aromatizou o primeiro beijo, da canja de galinha ao perfume ensolarado de um lençol recém trocado... o nariz é parte da memória. Em A Fisiologia do Gosto, de Brillat-Savarin, livro considerado por muitos como a certidão de nascimento da gastronomia, o olfato é citado como sensor imprescindível para apreciar sabores. Para esse gastrônomo e epicurista, o olfato e o paladar formam um único sentido, onde a boca é o laboratório e o nariz, a chaminé. É pelo cheiro que somos seduzidos a provar ou desistir de um prato!
É de tanta importância que aquela cozinha desenhada por Herve This, e praticada por Ferran Adriá e seus discípulos, criou um novo profissional para executá-la com mais alma: o perfumista culinário. É o caso do biólogo Frances Yves Dubus, que desenvolveu em laboratório perfumes culinários como fragrâncias de baunilha, café, gengibre, cravo, cardamomo. Enfim, a cozinha moderna está “empacotando” aromas. A cozinha de gelatinas e espumas, totalmente inodora, pode ter agora seu perfume, portanto além de sabor de ostra na espuma produzida com muita química, podemos aplicar agora um “desodorante” de manjericão fresco com limão obtido quimicamente.
Poderemos assim dispensar o, para alguns, desagradável ato de limpar as ostras, abri-las e consumi-las fresquíssimas com limão e manjericão. Esses processos arcaicos que dão tanto prazer aos que apreciam e praticam a arte culinária tendem a virar artigos de pesquisa na mão de pesquisadores do século XXV da gastronomia do século XX. Afinal, contemporâneo será produzir pratos com sabores e cheiros artificialmente aplicados ao bel prazer do chef cibernético e seus assistentes C-3PO e B-9 repetindo “não tem registro, não tem registro!”.
Um dia talvez tenhamos uma espuma com densidade e textura desejadas, produzida em laboratório em formas desejadas, onde aplicaremos a cor desejada, o sabor desejado e o aroma desejado através de óleos essenciais e perfumes culinários. Não que não seja interessante o uso desses óleos essenciais e esses “perfumes” que concentram as propriedades e aromas dos elementos, mas será que isso não vai transformar nossa cozinha caipira em um laboratório? Será que um dia teremos que explicar aos nossos descendentes o que é alho ou cheiro verde e mostrar suas figuras em sites de história?
Ou amassar uma folha de manjericão para provar que aquele aroma delicioso que está na ampola de titânio no porta temperos é mesmo de uma planta? Seja como for essa evolução da culinária, os cheiros continuarão fazendo parte do nosso cotidiano e da nossa lembrança. E que venham novos perfumes! Nota do autor: o epicurismo é uma filosofia muito pouco difundida, que foi criada pelo grego Epícuro em 306 a.C. e foi a primeira linha de pensamento de Atenas com influência e seguidores em Roma. O epicurismo reconhece um único valor na vida humana: o prazer. Entre eles os prazeres da boa mesa, do bom vinho, da sedução, enfim, defende que o homem deve procurar a felicidade sempre valorizando a ética, e define que o prazer é o equivalente à ausência da dor.