Preservando a tradição
Em minha recente viagem às regiões vinícolas da Espanha, entre as diversas visitas agendadas houve algumas em vinícolas extremamente modernas e com fama mundial, como, por exemplo, a mítica Vega Sicília, em Ribera Del Duero. Mas também conheci cantinhos especiais por sua simplicidade e apreço pelos métodos mais tradicionais e, talvez, hoje, arcaicos. É sobre essa dualidade que existe no fantástico mundo do vinho que quero falar. Como podemos estar ao lado de equipamentos modernos, de última geração, profissionais com centenas de diplomas e um currículo invejoso e atravessando a rua nos deparamos com uma casa simples onde no porão escavado no solo encontra-se um senhor produzindo vinhos num tanque de concreto antigo, contrastando com os brilhantes tanques de inox encontrados anteriormente?
Pois é isso que muitas vezes me fascina mais do que visitar os nomes famosos, onde a única diferença entre as vinícolas é a tonelaria que faz a barrica de carvalho e o tamanho do tanque de inox utilizado, onde tudo é impecavelmente brilhante e limpo e as pessoas passando de jaleco mais parecem estar dentro de um hospital.
Dizendo isso não estou, de maneira alguma, tirando a essencial presença desses fatores na produção do vinho. Aliás, é exatamente esse elo que faço com o Senhor Ildefonso Lejarraga, que no momento em que entrei em sua humilde casa em um pequeno povoado Riojano me disse: “vinhos são como crianças, precisam de carinho e higiene”.
O calor de 42 graus ficou lá fora, porque ao descermos para sua “bodega” escavada sem assimetria no solo local, o termômetro raramente saía dos 13 graus. Há muitas décadas ele produz seu vinho ali, proveniente de um vinhedo próprio que cuida em meio a uma linda horta com alcachofras, tomates, pimentões e uma imensa variedade de frutas, que ele, todo orgulhoso, nos levou a visitar. As uvas são trazidas até sua casa na caçamba de um antigo caminhão e despejadas no solo para iniciar o processo de maceração e posteriormente vão para cinco pequenos tanques antiquíssimos, feitos de concreto, escavados no chão e tampados somente com uma portinhola de madeira e um pedaço de couro. Três barricas de carvalho marcadas pelo tempo estão na sua adega subterrânea, ornamentando o local junto a outras diversas ferramentas manuais, como mangueiras e medidores.
Quando cheguei para o almoço de domingo, a convite do produtor dos vinhos Marquês de Tomares, o amigo Oscar Montaña, que é entusiasta, amigo e comprador dos vinhos do Sr. Ildefonso, os tanques estavam cheios e tive uma surpresa ao saber que deveríamos realizar um processo bem antigo de aerar cada um deles com uma antiga jarra de plástico, já com a sua original cor branca completamente esquecida pela cor tinta dos vinhos. A minha felicidade se completou quando me foi dada a tarefa de escolher um dos cinco vinhos para acompanhar o almoço e ter minha escolha confirmada com a humilde palavra do próprio produtor que, com um sorriso, disse: “Esse é meu melhor vinho”. E ali, naquela mesma jarra pegamos o vinho e levamos pra cima, na pequena sala de refeição, bem em frente a uma bela lareira acesa com os ramos secos de videiras, fazendo um fogo vivo e intenso, ideal para grelhar pedaços de pancetas e costelinhas de cordeiro, que se juntaram a deliciosa salada de pimentões cozidos e à tortilla de batatas preparadas pela sua esposa Isabella. O vinho, delicioso e frutado, servido num copo simples, a mesa farta de delícias locais e o orgulho de Ildefonso, contando histórias sobre seus vinhos e sobre a sua linda Rioja.
Foi uma experiência que jamais esquecerei e que, infelizmente, está prestes a desaparecer. São poucos que ainda resistem à modernização e falta interesse na nova geração em continuar nesses pequenos povoados produzindo seus próprios vinhos. Tive o prazer de ter sido convidado para vivenciar a verdadeira Rioja, e gostei tanto dela que não a trocaria por nenhum hotel ou restaurante estrelado.
Sobre o autor
Eduardo Machado Araujo
Certified Sommelier - Court of Master Sommeliers
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