Picadinho de crítica, por André Vasconcelos
O simples como alvo de críticas elitistas em uma reflexão sobre o valor da autenticidade
Uma questão: que curso, que formação, que critério, enfim, que qualidade especial é preciso para ser “eleito” um crítico especializado?
Quem, ou o que, dá a esses seres o direito de tecer críticas embasadas muitas vezes em pífios conhecimentos e opiniões pessoais sobre que assunto ele for especializado: gastronomia, cinema, música, enfim, tudo?
Há algum tempo citei Marisa Monte em um trabalho lançado há anos atrás: simples e irretocável, isso na minha popularesca e humilde opinião, pois na opinião da crítica especializada, é música “menor”.
Uma revista semanal, veja você, chegou a escrever que “Marisa Monte parece ter esgotado a capacidade de refinar a música cafona” e que “virou um genérico de si mesma”... cafona e genérica por ser simples e praticar a verdadeira cultura popular.
Essa mesma revista já ovacionou a grandiosidade de Paula Fernandes!
Será que é coincidência críticas boas irem para quem vende números que beiram o milhão, ou insegurança de críticos de criticar o que é sucesso popular-povão?
Simplificando: a crítica é uma questão que todo mundo critica quando é o criticado!
Cafona é fazer crítica ao simples e ovacionar o brega que patrocinam mega produções de duplas estilo Fulano&Fulaninho/sertanejo-universitário como se fossem artistas que marcarão a história da música brasileira!
Críticos intitulam o que não gostam ou não entendem de cafona!!!!
Cafona é exigir um padrão único de qualquer coisa que seja!
Cafona é ditar regras para ser considerada “boa gastronomia” com padrões determinados, levando todos os que almejam receber boas críticas, e também ser laureados com prêmios de “melhores”, a praticarem uma cozinha “igual”, pirotécnica, pós modernista e sem alma!
E esse trabalho tão criticado de Marisa Monte, se fosse possível transformá-lo em algum prato, na minha opinião, esse prato seria o picadinho, clássico popular brasileiro… o autêntico picadinho, não o gourmetizado!
Carioca e boêmio, o picadinho não têm data de nascimento e sua autoria é incerta e discutível, como muito samba-raiz: o picadinho pode ter sido em um botequim na Lapa ou um boteco na Praça Onze... talvez no final do século XIX ou nos idos anos 1930.
Fato é que a partir dos anos 1950, passou a frequentar cardápios de todo sudeste do Brasil, dos mais populares até os mais sofisticados. Era presença certa nas mesas da Boate Meia-Noite no Copacabana Palace e em endereços charmosos da capital paulistana, assim como marcou presença do Catete e foi destaque nas cozinhas presidenciais do Alvorada.
Sua receita simples, como tudo deveria ser, tem como principal elemento uma boa carne, na versão hypada usam o filet mignon, mas na minha cozinha, onde o sabor está em primeiro plano, uso o peito ou a ponta de agulha, carne de segunda para muitos, e carne de verdade para os bons.
A carne não pode ser moída, tem que ser cortada na faca em cubinhos, picadinha como sugere o nome, em cubos não em tiras, talvez com 2 centímetros de lado.
Originalmente era feito em panela de cobre com tomates e um leque de ervas que vão da cebolinha a segurelha, e para se apresentar à mesa: travessa de barro!
Arroz, agrião picado, farinha de mandioca torrada, pimenta malagueta e ovo poché (o sotaque francês como uma homenagem a soupe d´oignon que alimentava os boêmios parisienses na década de 1950)... assim ia a mesa, todos os sabores em um único prato.
O ovo frito e a banana empanada caracterizaram a versão paulistana.
Na mesma São Paulo, uma das melhores publicações gastronômicas da atualidade foi criativa e atrevida ao ponto de eleger não o melhor restaurante, não o best-chef, muito menos o laboratório/cozinha mais eficiente, não o foie gras mais bem elaborado e nem a trufa mais fresca: buscam sim, o melhor picadinho!!!!!
Picadinho já é parte da história da gastronomia brasileira, assim como seu primo mais elegante, e mais sofisticado, um picadinho russo metido a francês.
Mas até o estrogonofe que já foi glamouroso, hoje é cafona.
Críticas à parte, um bom estrogonofe tem seu valor!
Nasceu Strogonov no século XVI como ração para o exército russo: nacos de carne, um picadinho, conservados em barris com aguardente e sal grosso.
Um cozinheiro do Czar Pedro, o grande, era o protegido do general Strogonov e refinou, a pedido do protetor, esse picadinho que passou a ser servido à corte.
Com o êxodo provocado pela Revolução de 1917, a receita chegou à França, onde foi aprimorada tomando a forma que se apresenta hoje.
Hoje o Strogonoff está entre os dez pratos mais vendidos no mundo.
O picadinho deve estar entre os dez mais vendidos no Brasil, certamente ao lado do estrogonofe e das muitas versões de moquecas.
Se é cafona ou não comer picadinho ou estrogonofe eu não sei.
Mas pretendo continuar comendo e fazendo picadinho e estrogonofe … e escutando Marisa Monte encantando com frases como: “ não vou te mandar pro inferno porque não quero, e porque fica muito longe daqui!”
Salve a cafonice!
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Sobre o autor
André Vasconcelos
Cozinheiro raiz e autodidata, hoje no comando de sua Cozinha Singular Eventos e d'O Vilarejo Hospedaria e Gastronomia, onde insumos e técnicas são a base de cardápios originais e exclusivos... e aprendiz de escritor também!
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