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Os sentidos da vida, por André Vasconcelos

O umami está presente também no tomate e, para mim, poucas coisas são mais prazerosas que uma salada de tomate com roquefort e azeite, prato cercado de umami por todos os lados (Foto: Internet/ Reprodução) **Clique para ampliar

Publicado em 24/08/2023

Visão, audição, olfato, tato e paladar. Os cinco sentidos.

Dizem existir o sexto sentido, este creditado ao espírito, à alma, que, de outro plano, vê o que acontece à nossa volta e assim pré-sente os fatos que estão por vir.

Dizem também que a mulher tem um sexto sentido, mas isso alguma mulher inventou, como inventou a lenda urbana que diz que elas são o sexo frágil!

Frágil é um homem apaixonado!!!

*Obs: talvez algumas mulheres me julguem machista por essa afirmação, como condenaram um famoso chef por valorizar a beleza de outra chef, mas “herrar é umano”, e todos têm direito de manifestar o que pensam sem denegrir nem ofender ninguém!

Mas, outros dizem que esse sexto sentido só as mães têm e, por vezes, chego a crer nisso, mesmo conhecendo várias mães que não sabem nem o sentido de ser mãe.

São os cinco sentidos que nos possibilitam interagir com o mundo exterior através de sensações enviadas ao cérebro pelos órgãos responsáveis por cada um deles, e não é a falta de um deles que muda alguma coisa em pessoas brilhantes.

A quase ausência da visão de Alicia Alonso, uma das maiores bailarinas da história, não a impediu de dançar mesmo vendo só vultos no palco e, com a audição também comprometida, sentia a musica na vibração do assoalho.

Alguns fazem da ausência da visão uma festa para nossa audição.

Em “Ribbon in the Sky”, Stevie Wonder, em uma das suas mais belas canções, declama sobre um aviso no céu sem nunca ter visto sequer uma nesga de céu.

Inebriante é a emoção nas vozes cegas de Ray Charles com “Georgia” ou de Andrea Bocelli com “Amapola”.

Mesmo sem ouvir muito bem o que tocava, Beethoven não deixou de compor obras que alimentam e acariciam nossos ouvidos.

Aliás, o carinho também provém de um sentido: o tato!

Ludwig Van Beethoven sentia as notas vibrando no marfim e no ébano das teclas do seu piano, e tateando criou sinfonias inesquecíveis.

Tato é a visão com os dedos, é a leitura da pele a tudo que nos toca, e a falta do tato, a anestesia, é um mal de difícil diagnóstico e superação.

A anosmia é a perda total do olfato, que também pode afetar o paladar e, coincidência ou não, as células receptoras do paladar e do olfato são as únicas do sistema nervoso que são substituídas quando velhas ou danificadas.

Podemos envelhecer e conservar para sempre sabores e perfumes.

Mas, como degustar um bom prato sem ver cores, sem sentir texturas, sem aspirar aromas e, até mesmo, sem ouvir suspiros de prazer ao sentir tudo isso?

Ageusia, esta é a denominação para quem não tem paladar!

Ageusia, privação do resumo de todos os sentidos.

Pessoalmente, como não poderia deixar de ser, acho que o paladar é o sentido mais pessoal dos cinco, totalmente subjetivo, pois as reações químicas dos alimentos em cada boca são únicas.

Quando vi “Guernica” pela primeira vez, me emocionei e, como todos os outros visitantes que estavam ao meu lado, deliciávamos nossa visão com a mesma tela, as mesmas cores, as mesmas texturas, cada um apreciava ou não aquele clássico de Picasso, mas todos viam a mesma pintura.

Ouvi Yo-Yo-Ma na Sala São Paulo, e todos os expectadores sentiam sua audição ser acariciada com a mesma maravilhosa interpretação de várias peças, e em todas o mesmo soar leve, porém marcante, do violoncelo.

Alguns podiam não gostar da música, mas todos escutavam a mesma coisa.

Será que sentimos todos os mesmos gostos no mesmo prato?

Qual a intensidade da “explosão” do wassabi na boca de outro?

Pode ser um “estalinho” ardido ou uma bomba atômica sufocante!

Como definir o sabor da manga madura temperada com pimenta branca e tostada em uma chapa de ferro encimada com um escalope de foie gras?

Será que na boca de todos têm o mesmo sabor?

Tomo por mim que, por vezes, faço uso de uma erva de origem asiática muito utilizada na culinária de vários países, o shissô.

Da família da menta, ela tem um gosto muito peculiar que encanta muitos apreciadores da boa gastronomia, mas, para mim, tem gosto de “fede-fede”, aquele besourinho que infesta nossos jardins, e, como no nome diz, fede!

Paladar é a percepção dos gostos doces, salgados, amargos e azedos e, há muito pouco tempo, descobriram um quinto gosto: o umami.

A palavra umami é de origem japonesa e traduzindo livremente, umami deriva de “umai”, que é uma referência a ótimo, gostoso, saboroso, bom ou perfeito.

Algumas substâncias químicas, aminoácidos na sua maioria e umami na sua essência, são detectados pelo TmGluR4 que, apesar de parecer nome de robô do Star Wars, são receptores da língua tão específicos quanto os que detectam os gostos doce, salgado, amargo e azedo.

O glutamato monossódico, o principal aminoácido que nos remete ao umami, descoberto em 1908 pelo japonês Kikunae Ikeda, foi sintetizado em um único tempero: o aji-no-moto.

Esse tempero milagroso está presente em todos os temperos prontos com o intuito de valorizar o sabor, ou maquiar a falta dele.

Cubinhos, temperinhos, pozinhos e caldinhos em potinhos propagandeados por alguns chefinhos que colocam o valor acima do sabor, lotam as prateleiras de supermercados e dispensas medíocres no intuito de melhorar o paladar através do umami, e muitas vezes alcançam o objetivo.

Mas é justo colocar o glutamato monossódico como o vilão, pois ele está naturalmente em vários alimentos. O uso indiscriminado e exagerado dele é, sim, um crime, mas, neste caso, os criminosos são os cozinheiros ou os engenheiros de alimentos que criam e fazem uso desses cubos mágicos vendidos como temperos.

Sentimos o umami natural nos queijos fortes, nas carnes vermelhas, no leite humano e na sardinha, que, ao contrário do que alguns pensam, não nasce na lata, e, quando fresca, é maravilhosa cozida no vapor e servida com azeite.

Não é preciso muita técnica, “frescura” ou dinheiro para termos pratos magnânimos repletos de umami.

O umami está presente também no tomate e, para mim, poucas coisas são mais prazerosas que uma salada de tomate com roquefort e azeite, prato cercado de umami por todos os lados.

Mas. afinal, que gosto tem umami?

Lamber o aji-no-moto não é nada agradável, falo por experiência, e esse ato tresloucado não dá a dimensão desse gosto misterioso.

Como lamber sal puro ou beber vinagre também não dá a dimensão real do gosto azedo e do gosto salgado.

Se, desde cedo, não fossemos ensinados que o gosto de sal é salgado e o de doce é doce, provavelmente não saberíamos definir o que é doce, salgado, azedo ou amargo, como não sei definir o umami.

Vivi muitos anos sem saber da existência do umami, mesmo ele existindo.

E, sabê-lo agora, não vai mudar muita coisa, pois o que vale no paladar é o prazer, é a combinação harmoniosa de gostos, é a textura surpreendente do bacalhau fresco, a cor arroxeada do alho negro, o perfume da baunilha no creme brulée, o estalar macio da macadamia torrada e tudo aquilo que nos faz flutuar de prazer.

Coincidência ou não, o umami é presente em todos estes quitutes.

O paladar é o sentido do prazer, e, como todos os sentidos, tem que ser educado para trazer mais prazer a cada garfada, sem medo de não gostar, pois novos sabores podem nos trazer novos prazeres.

Como escreveu Brillat-Savarin na “bíblia” da gastronomia, "A fisiologia do Gosto”: A descoberta de um novo manjar causa mais felicidade ao gênero humano que a descoberta de uma estrela!

Bom apetite!

 

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Sobre o autor

André Vasconcelos

Cozinheiro raiz e autodidata, hoje no comando de sua Cozinha Singular Eventos e d'O Vilarejo Hospedaria e Gastronomia, onde insumos e técnicas são a base de cardápios originais e exclusivos... e aprendiz de escritor também!


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