Os entoucados
É surpreendente como os cabelos nos revelam e nos entregam. Repare nos filmes de suspense: basta o suspeito fazer uso de um chapéu de feltro ou um simples boné e passam incólumes sob os olhos dos policiais: esconder os cabelos os faz invisíveis! Pop stars não são notadas em meio a multidões com os cabelos envoltos em um lenço. Bandidos e políticos, quase uma redundância, se escondem em capuzes quando são conduzidos por algozes policiais ao seu calabouço moral.
Esconder os cabelos parece não ser só encobrir parte do corpo, mas boa parte da personalidade. E o que dizer de nós, que trabalhamos enclausurados em uma cozinha? Mas sem se fazer notar, a clausura maior não são as paredes que delimitam nosso espaço e, sim, no mundo obscuro de uma touca, um lenço, uma bandana ou nos chapéus-cogumelo – marcas registradas desta tribo culinária.
Antes de continuar essa elucubração sobre o mundo sob uma touca, a estória de chapéus-cogumelo merece um capítulo à parte: com a derrocada do império bizantino pelos turcos na Idade Média, os grandes cozinheiros, perseguidos pelo pecado da gula, esconderam-se entre os monges e adotaram suas vestimentas como disfarce, inclusive o seu chapéu negro em forma de cogumelo. Quando os descendentes e pupilos destes alquimistas voltaram para suas cozinhas, levaram consigo esses chapéus, só que brancos, para não serem confundidos com os religiosos.
Filosofando mais uma vez, esses chapéus-cogumelo, batizados de toque blanche, fizeram da profissão de cozinheiro praticamente uma religião dedicada ao pecado da gula... Muitos veem como principal função do chapéu evitar que os imundos cabelos dos chefs, e de todo os habitantes deste “eco-sistema” que vive nas cozinhas, mergulhem em alguma panela!
Será que quando nossos pratos são servidos em magníficos bufês, com apresentações dignas de Carême – aliás, o primeiro cozinheiro a adotar oficialmente o toque blanche – os convidados com penteados esvoaçantes não correm o risco de ter um fio dos limpíssimos cabelos lançado sobre alguma salada caprese ou no molho Dijon? Nada difícil, mas no inconsciente coletivo, o cabelo vem sempre da cozinha, mesmo que todos ali sejam carecas ou usem lenços hermeticamente vedados sobre o couro cabeludo.
Nenhum destes comensais cabeludos consegue imaginar como é a vida sob essas toucas! No comando da cozinha, sob o toque blanche, temos que ter a determinação de um leão, sem juba, o ritmo do Bob Marley, sem dreadlocks, o charme da Gabriela de Jorge Amado, careca, a força de Sansão, sem Dalila, a megera da tesoura. Somos os “sem cabelo”, os “entoucados”, seres diferentes do que somos no convívio social.
Todos conhecem, ou almejam conhecer, os chefs das cozinhas onde frequentam, seja no bufê do almoço ou no restaurante com “pedigree” escolhido a dedo para jantar em momentos especiais. Ali, em nossas cozinhas, somos vistos como serviçais sorridentes e de pele brilhante, encimados por um clássico toque blanche ou algum acessório moderno que o substitua.
Poucos sabem que o brilho da pele é da gordura que faz parte da composição do ar de toda cozinha, e muito menos que nós, da cozinha, temos cabelos! E o que dizer das grandes mulheres cozinheiras, que além de precisarem ser mais “grande” que qualquer homem, ainda têm que abrir mão da vaidade e encerrar os cabelos bem tratados e esvoaçantes em um turbante gastronômico ou algo que o valha. Só por esse fato, todas essas mulheres que se dedicam à cozinha já têm meu respeito e admiração.
E muitas, além desse desprendimento, têm uma grande mente criativa confinada na touca de cozinheira. E não são raras vezes que nós, da cozinha, cumprimentamos, num encontro casual no mundo real onde vivemos sem touca, um cliente simpático e “intimo” e ele nos responde com tímido “oi” e com expressão de ponto de interrogação. Muito não reconhecem os seres de toucas que vivem nos porões da gastronomia sem suas toucas. Só são reconhecidos aqueles que tiram a touca, se tatuam, frequentam as colunas sociais e comandam programas gastronômicos que encharcam todos os meios de comunicação. Estes são ícones do mundo real moderninho, os gastro celebridades!
Já um dos mais conceituados chefs do Brasil, Laurent Suaudeau, criticou publicamente essa glamorização da profissão de cozinheiro, e, entre linhas comentou a difícil tarefa de “honrar a touca que usamos”. “Cozinha de restaurante é um habitat para loucos ou apaixonados”, ele conclui. E os bons, são loucos e apaixonados ... e honram a suas toucas!
São apaixonados pela gastronomia na sua mais simples expressão e não medem esforços para fazer do trabalho de cozinheiro uma louca arte. Uma arte que não admite erros, pois o principal crítico está a poucos metros, pronto para julgar, absolver ou condenar o resultado de muita pesquisa e estudo. Um crítico algoz, o cliente, que hoje tem como armas os aplicativos e as redes sociais! Somos cabeças que vivem a prêmio, sempre pensando em inovações, aromas, texturas, sabores, temperaturas, cores, enfim, tudo que pode compor um prato.
E são tantas as informações que temos em nossas cabeças de cozinheiros que chego a pensar, nas minhas muitas divagações, que o uso da touca serve mais como uma barreira física para não deixar as ideias fugirem, ou para concentrar as ideias e as experiências de sucesso vindas das panelas. E tudo para agradar o nosso crítico, o cliente que não nos conhece sem touca! E tudo para agradar também, e muitas vezes, principalmente o nosso ego, eu admito.
Para os entoucados, chefs ou cozinheiros, profissionais ou amadores, principiantes ou experientes, o maior prazer é ver estampado no rosto dos nossos críticos, os comensais e clientes, a satisfação ao degustar uma criação que surgiu das nossas mentes e mãos. E, invariavelmente, confinados em nossos “toque blanche” sorrimos agradecidos pelo sorriso do cliente!