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Odisseia na Borgonha

Foto: Divulgação

Publicado em 02/11/2017

Imagine ser um cientista e ser convidado a trabalhar por um período na NASA, ser um físico e passar cerca de dois meses no CERN na Suíça. Sem exageros, foi um pouco do que senti ao fazer parte, durante quase sessenta dias, da produção de vinho na Borgonha em setembro desse ano.

Participei do programa “Odisseia na Borgonha” que além de fornecer um curso intensivo sobre a região nos permite participar como estagiário da colheita e produção numa Maison local. Para alguém que vive vinho, estuda e trabalha no ramo isso é uma experiência única e aqui pretendo dividir um pouco com vocês essa minha vida na “Terra Santa”: a Borgonha!

Cultura, História e Tradição. Quando se está na Borgonha, você está na definição do que essas palavras significam quando falamos em vinho. Geralmente o Santo Graal, aquele vinho especial guardado para o momento mais importante da vida de um enófilo é um Borgonha. Podemos ser mais específicos e falar que dentre os vinhos mais cultuados do mundo uma grande maioria seria de lá, nomes como Romanée-Conti ou Montrachet, por exemplo, atravessam as fronteiras do vinho e são entendidas por diferentes pessoas que as vezes nem estão inseridas nesse contexto.

Lá estava eu, há menos de três quilômetros do mítico vinhedo, monopólio do Domaine de Romanée-Conti, morando na vila de Nuits-St.Georges entre Beaune e Dijon. No início tentei estagiar num Domaine famoso, reconhecido mundialmente e situado em Vosne-Romanée ou Gevrey-Chambertin, terras sagradas dentro da Côte d’Or. Mas, todos os estagiários eram enólogos ou viticultores e para mim, sommelier, ficou mais fácil conseguir algo com produtores novos ou não tão badalados. O que achei que seria ruim se tornou a melhor situação.

Fui escolhido por um jovem négociant (que não possui vinhedos e compra uva de produtores locais) situado na mesma vila que eu estava morando, Nicolas Morin e sua Maison que leva seu nome estão lá desde 2014, um fato que não é comum quando falamos de um local com famílias que passam da décima geração cultivando uva e produzindo vinhos. Justamente por ser um novo produtor e trabalhar sozinho, fui o braço direito dele em todos os aspectos da produção.

Nunca imaginei que ia participar de negociação e escolha de uva, de gerenciar uma colheita e recepção dos frutos nas vinícolas e de ter um próprio tanque com um Grenache de vinhas velhas que colhemos na região de Ventoux no sul da França. Essa confiança inicial me deixou cheio de orgulho e muito empolgado para vencer alguns dias em que trabalhávamos jornadas superiores a quatorze horas.

Talvez, como vi depois com meus colegas de curso, se eu ficasse com um produtor famoso e maior, seria mais um entre os ajudantes, estagiários e ficaria limitado a praticamente acompanhar de perto as coisas básicas. A juventude de Nicolas, sua cabeça aberta e sua filosofia de produzir vinhos com a menor intervenção possível nos levou a trabalhar com diversas uvas e estilos diferentes num local em que praticamente duas variedades predominam, a Chardonnay e a Pinot Noir.

Assim, pude conhecer Ventoux e vinhas de Grenache com mais de oitenta anos, ver a produção de um Pet-Nat com uvas do Jura, fazer um Aligoté (outra branca da Borgonha) em tanques de concreto em forma de ovos e descobrir na prática que além da Chardonnay e Aligoté, a Borgonha também tem um Premier Cru com a uva Pinot Blanc, produzimos então o Les Terre Blanche em Nuits-St.George.

A sensação de ver o sol nascendo em meio aos vinhedos em forma de anfiteatro nos altos de Monthélie durante a colheita é algo indescritível e cada vez que a gente ia para um vinhedo diferente colher aquelas uvas que são plantadas no mesmo pedacinho de terra há séculos, essa sensação se renovava e parecia que era a primeira vez. Utilizar prensas com mais de 150 anos de história para esmagar nosso primeiro Chardonnay, um Meursault, foi incrível e ainda mais ver a magia do início da fermentação espontânea, sem nenhum tipo de intervenção, apenas com as leveduras que os séculos de produção local selecionaram em perfeita adaptação com o terroir local. 

A Borgonha respira vinho, vive vinho e trata o vinho com respeito, mas sem frescura. Taças, temperaturas, harmonizações, isso não importa quando são nove horas da manhã e você faz uma pausa para descansar em meio à colheita!


Sobre o autor

Eduardo Machado Araujo

Certified Sommelier - Court of Master Sommeliers


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