00:00
21° | Nublado

O Natal do ano todo
Quem bom seria se a data durasse na maior parte dos meses

Os 'pequenos homenzinhos natalinos”, uma tradição em toda Europa desde o século XV (Imagem: Reprodução)

Publicado em 05/12/2018

Se observarmos bem, cada vez mais o Natal toma espaço do ano...

Outrora, a enfeitada árvore de Natal se destacava nas salas de nossas casas e nas lojas somente no mês de dezembro, fechando seu reinado no Dia de Reis, 6 de janeiro. Hoje já é Natal em meados de outubro; logo após o Dia das Crianças os enfeites começam a surgir como magia, tomam aos poucos os espaços nas ruas e nos shoppings... e até um pouco em nossos corações.

Na Netflix, metade das sugestões de filmes passam a ter o Papai Noel como ator principal ou então o roteiro é dominado pelo espirito de Natal. Que bom fosse se o tão falado espirito natalino realmente tomasse conta de mais meses do ano... Que bom seria se ao invés de dois meses de Natal tivéssemos 10 meses de Natal e dois meses de ano vulgarmente dito.

E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas... que bom seria. O amor viveria no ar e tudo seria somente paz: governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrariam em regime de fraternidade. 

Os objetos se impregnariam de espírito natalino, e veriamos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor! A música permaneceria a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram! Equívocos musicais seriam arquivados, sem humilhação para ninguém, porque não há nada mais chato que trilhas sonoras de Natal mal elaboradas, com orquestras bombásticas e vozes embargadas.

E o que dizer da nossa cozinha?

Os jantares se transformariam em ceias, e os almoços seriam servidos tarde, com os restos da ceia do dia anterior... Em pleno inverno, com o chá para aquecer a alma, comeríamos os biscoitos de gengibre e mel, os “pequenos homenzinhos natalinos”, uma tradição em toda Europa desde o século XV, época em que casas de biscoitos de gengibre eram construídas para enfeitar o Natal. Aliás, foram essas casas que inspiraram os Irmãos Grimm a criarem o famoso conto de João e Maria, cuja casa da bruxa, era feita desses confeitos. 

No Natal do ano todo, segunda-feira poderia ser dia de peru, uma tradição natalina que importamos dos Estados Unidos. A galinha da Índia, rebatizada de peru, já era criada pelos astecas e índios norte americanos quando foi levada para o velho continente pelos descobridores. Logo substituiu o ganso, o pavão e até o cisne na mesa de Natal de vários reinos. 

Para sobremesa do todos os dias, dois ícones natalinos seriam minhas estrelas: o panetone e a rabanada. Já uni eles há algum tempo com a receita do pain perdu! Pain perdu na França, eggy bread na Inglaterra, French toast nos Estados Unidos, rabanada no Brasil!

A origem dessa receita natalina sempre nos remete a Portugal, mas feita com panetone italiano ao invés de pão, e enriquecida com creme de leite como fazem os franceses, traz um sabor que, para mim, é a síntese dos sabores de Natal! E que tal um leitão assado em um almoço frugal de família? Desde a fundação da Império Romano, leitões assados são servidos em ocasiões especiais, como almoços de Natal! 

Mas como eu viveria em um tempo em que o ano todo seria Natal, todos os dias seriam especiais e assados seriam triviais.

E o bacalhau, prato típico do Natal português? Em natas, com batatas, com grão de bico ou simplesmente em forma de bolinhos, este peixe é sempre motivo de celebração, e como todo dia é Natal, pode ser um prato do dia-a-dia. Mas entre tantos pratos que fazem a ceia natalina, nada mais brasileiro que o salpicão. Raros são os pratos de Natal que, de fato, nasceram em solo tupiniquim, e o salpicão é um deles!

O nome veio de uma salada mexicana, o salpicón, e com algumas pitadas da culinária francesa, frutos e legumes, crus ou cozidos, mas sempre coloridos, são envolvidos pela maionese e enriquecido com alguma carne que sobrou de outra celebração, como o tender em tirinhas ou o peru desfiado. Desde os anos 1950 o brasileiríssimo salpicão se faz presente no Natal...  Lamentável que alguém, algum dia, teve a infeliz ideia de colocar passas no salpicão!

Aliás, alguém, em algum momento da nossa história gastronômica, resolveu que uvas passas são obrigatórias nos pratos de celebração. No Natal do ano todo eu só colocaria uma restrição: o fim das uvas passas colocadas aleatoriamente em qualquer receita! Não há como transformar um arroz sem gosto em arroz de festa colocando passas.

E para brindar esse Natal do ano todo: vinho! A bebida oficial de festas desde seis mil anos antes de Cristo... Antes de ter Natal, o vinho já era obrigatório em celebrações, inclusive religiosas.

Um brinde, e feliz Natal. Ah! Seria ótimo se os sonhos do poeta se transformassem em realidade.

(Texto inspirado em um texto de Carlos Drumond de Andrade extraído do livro "Cadeira de Balanço", Livraria José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 52).