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O luxo do lixo!

(Foto: Divulgação)

Publicado em 01/03/2018

Há quem não goste de Luis Fernando Veríssimo, e eu, mesmo não sendo um fã ardoroso, encontro coisas geniais e inspiradoras em seus textos.Um deles em especial sempre ficou gravado nas minhas boas lembranças literárias: pelo conto em si, a forma que foi escrita, um diálogo teatral, e principalmente pela verdade presente nele.

“O lixo” publicado no Analista de Bagé de 2002 fala do encontro de dois vizinhos de apartamentos que nunca tinham se visto pessoalmente, mas se conheciam por observarem o lixo um do outro colocado diariamente no corredor. “Sua família deve ser pequena...” conclui um pela pouca quantidade de lixo produzida, que na verdade nunca é pouca.

Nós, animais humanos, somos uma raça exagerada e cada vez mais exageradamente vivemos. Usamos um equipamento de mais de mil quilos para nos locomover, em geral sozinhos, e ao volante consumimos perto de mil litros de combustível fóssil anualmente: lixo no ar.

Um brasileiro gasta mais de 200 litros de água diariamente, mas se levarmos em consideração a pobreza e a falta dela em grande parte de nosso território, arrisco dizer que muitos de nós consomem bem mais que isso... água tratada como lixo, isso sem falar no esgoto que é lixo, e grande parte lixo in natura, sem tratamento despejado no mar, nos rios e em lagoas.

“- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.”, constata a vizinha personagem de Veríssimo.

Produzimos, cada um de nós, quase uma tonelada e meia de lixo por ano, lixo com nossa personalidade, que denunciam o nosso estilo de vida e preferências. Bem mais da metade desse lixo dispensado da forma incorreta, sendo que entre as grandes cidades, Brasília é campeã em tratamento inadequado desses detritos... o que não é de se estranhar, afinal grande parte do lixo da capital federal mora em moradias funcionais e recebem salários milionários.

“- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...” comenta ele.

Traçar o perfil psicológico e a personalidade de cada um através do lixo que produz é uma missão muito fácil, e as preferências gastronômicas mais ainda. A ideia pode parecer absurda, mas pare e pense no que vai no seu lixo: colocamos o resto de nossas vidas, desde coisas que quebraram até lágrimas secas em lenços de papel.

No lixo mostramos nossas desesperanças em fotos rasgadas, anotações esquecidas, recados não dados, lembretes lidos e descartados. No lixo revelamos nossos cardápios em caixas de pizza sujas, ossos de galinha, cascas de camarões, sementes de mamão e até latas vazias de patê de foie gras ou de sardinha barata.

No lixo declaramos em garrafas vazias muitos momentos de alegrias e tristezas, ou simplesmente garrafas cheias de esperanças, ou meio cheias de vinhos que de tão vagabundos não valiam ser tomados. O lixo é o fim de tudo, mas muitas vezes o começo, afinal reciclar é a palavra do momento!

No lixo dos brasileiros está a comprovada opulência do que é a nossa mesa. Pode parecer uma declaração um tanto burguesa quando analisada por ela só, mas quantos já observaram, ou ignoraram do que é feito o lixo que sai das feiras livres, entrepostos como o Ceasa, dos grandes supermercados e até do “sacolão” ou mercadinho de bairros mais populares?

Sou um garimpador desses lixos, tenho gansos que se alimentam destes lixos, e frequentemente produzo riquíssimos molhos de tomates, torrones de batatas doce, sorvetes de pêssego maduro e tantas outras iguarias saem desse “lixo” antes de chegarem enfim ao coxo do meu quarteto de gansos.

Chega a ser uma falta de respeito os produtos que vão para o lixo: falta de respeito a quem produz, a quem não tem o que comer, a quem transporta, a quem comercializa, ao consumidor, enfim, total falta de respeito ao nosso planeta.

Ao que parece, até na hora de comprar alimentos saudáveis a sociedade é seletiva e preconceituosa, pois ninguém escolhe “fruta feia”.  Entende-se por “fruta feia” qualquer hortifrúti que nasça com pequenas deformidades, tamanho inferior ao esperado ou que sofra “lesões” na casca ou nas folhas durante a colheita, transporte ou exposição, sendo que essas deformidades não alteram em nada seu sabor e valor nutricional.

Em Portugal, que às vezes me espanta pela ingenuidade, “gente bonita come fruta feia”. Este é o lema da campanha na luta para evitar o desperdício, os quase 30% da produção agrícola que não chega ao consumidor por ser uma “fruta feia”. No Brasil, segundo a Embrapa, onze milhões de toneladas de frutas e hortaliças vão para o lixo por serem “frutas feias”: 11.000.000.000 quilos de alimentos no lixo!!!!

 “Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?”, pondera o interlocutor de Veríssimo!

Somos o nosso lixo!

E ter consciência disso, já é uma mudança, pois de nada adianta pensar em alimento orgânico, biodinâmico, certificado, ou qualquer outra tendência de consumir alimentos, mais ditado pela moda do que pela consciência, se não houver preocupação no destino do lixo que produzimos.

Enquanto isso não acontece, vamos achando graça do conto de Veríssimo imaginando que é uma obra de ficção ... Ficção como Blade Runner, filme dirigido em 1982 por Ridley Scott, que mostra uma Los Angeles coberta de lixo sob uma chuva ácida num futuro muito distante, o ano de 2019!!!

É necessário mudar para que nossa esperança não vire lixo.