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O livro de receitas
Espécie de diário, ele é um relato histórico da vida de uma cozinha, onde valem rabiscos, páginas rasgadas e recortes de embalagens

Foto: Reprodução

Publicado em 05/06/2019

Assisti recentemente a uma comédia romântica (sim, eu assisto até comédias românticas!) chamada “Casa comigo?”, e o roteiro gira em torno de uma pergunta: em meio a um incêndio: se tivesse só sessenta segundos para pegar as suas coisas, o que pegaria? A princípio soou com uma babaquice hollywoodiana estilo Paulo Coelho ou Lair Ribeiro, mas isso ficou na minha cabeça: o que eu salvaria em sessenta segundos?

Pergunta capciosa que não tem nada de comédia e muito menos de romântica. Se o incêndio fosse em minha cozinha, certamente salvaria meus papéis desorganizados e amarfanhados que me atrevo a chamar de livro de receitas. Não que contenham muitos segredos, até porque a boa cozinha não tem segredos! Livro de receitas, na realidade, é um relato de experiências dos que arriscam, pesquisam, ensaiam, repetem técnicas e chegam a um resultado satisfatório. Mas, cada linha ou rabisco desse amontoado que chamo de livro de receitas, é resultado de muitas noites mal dormidas, cortes distraídos, queimaduras doídas e muito alimento desperdiçado.

Livro de receitas é quase como um diário, um relato histórico da vida de uma cozinha, onde valem rabiscos, páginas rasgadas, recortes de embalagens colados, enfim, é a mais pura tradução da alma do cozinheiro. Veio de Roma o primeiro livro de receitas que se tem notícias, “De re coquinaria”, com autoria dada a Marcus Gavius Apicius (30a.C – 42d.C). Filho de cavaleiro, esse aristocrata passava mais tempo na cozinha que entre os cavalos que geravam renda para sua boa vida, criando receitas no mínimo extravagantes, e segundo historiadores, demasiado indigestas e sofisticadas. Línguas de flamingo, de pavão ou de rouxinol, crista de outras aves, calcanhares de camelos e até genitálias de porcas, aliás, a carne suína era ingrediente de mais da metade das receitas.

Este foi o único dos tratados latinos sobre o tema que chegou até nós, e talvez tenha sido salvo nos “sessenta segundos” de algum apaixonado por cozinha, pois ele data de pouco antes do grande incêndio de Roma, o que aniquilou quase totalmente a sede do Império. Os historiadores atribuem esse incêndio ao tipo de construção comum em Roma neste período: prédios de até cinco andares construídos em madeira e com o fogo amplamente utilizado para cozinhar e aquecer os lares e onde, provavelmente por um acidente, ele surgiu e se propagou rapidamente devido ao vento forte.

Existe a versão que Nero ateou fogo em Roma para reconstruí-la com projeto arquitetônico que a tornaria ainda mais majestosa, mas, na ocasião do sinistro, ele nem na cidade estava. A versão mais fantasiosa, e a que mais gosto, é que Nero ateou fogo para inspirar-se poeticamente, tanto que em “Quo Vadis”, filme de Mervyn LeRoy, Peter Ustinov na pele de Nero toca lira e declama enquanto Roma arde em chamas. Mais poética ainda seria a cena de Nero salvando o livro de receitas “De re coquinaria” nos sessenta segundos a que teria direito.

O que temos hoje desse primeiro livro de receitas é uma versão do século IV onde aparecem muitas receitas batizadas para homenagear lugares: peixe à Alexandria, salsichas da Lucânia, frango a moda de Partos. Não faltam também receitas dedicadas a amigos do autor, como tachinho à moda de Lucrécio ou minutal à moda de Apícius. A tempo: minutal é como Apícius chamava os alimentos muito picados, um tartar.

Assim como essa, muitas palavras que batizam receitas e técnicas ao longo do livro sequer existem nos dicionários de latim, concluindo-se que desde essa época os cozinheiros já gostavam de inventar palavras ou rebatizar técnicas como lhes fosse conveniente. E, por falar em técnica, vem desse livro a técnica de engorda de gansos com figos secos para utilizar o fígado gordo, o foie gras de hoje. Dessa técnica de engorda veio o nome do órgão “ficatum” = fícus = figo = fígado.

Dentre as receitas, destaque para um creme doce a base de ovos batidos, leite e mel cozido lentamente em panela de barro que é até hoje a base para muitas sobremesas em todas as cozinhas. Só se aprende a cozinhar, cozinhando! E foi o que fez Gavius Apicius ... e muito! Escreveu o filósofo Sêneca sobre sua morte: “Tendo despendido na cozinha cem milhões de sestércios e dissipado em cada um dos festins inúmeros côngios principescos, pressionado pelas dívidas, viu-se então compelido a examinar pela primeira vez as suas contas, calculou restarem-lhe dez milhões e, como se assim ficasse reduzido a passar fome, pôs fim a vida envenenando-se”.

Difícil esse ofício de cozinheiro, tão glamourizado em tempos atuais e tão sacrificado em todos os tempos. Nós, os criadores de livros de receitas, os cozinheiros de fato, temos como padroeiro São Lourenço por um motivo que chega a ser cruel, quase um incêndio, mas com uma única vítima: perseguido político na Itália do terceiro século, Frei Lourenço foi queimado vivo em uma grelha, onde, diz o folclore popular, o religioso chegou a dizer a seu carrasco e algoz, enquanto assava sobre o fogo: “Pode virar o lado que este já está pronto...”.

Bizarro... se ele tivesse os sessenta segundos se auto-salvaria? São Lourenço tornou-se assim um santo cozinheiro com uma auto-receita e, no dia de sua morte em 10 de agosto, é comemorado o dia do cozinheiro. Só para não esquecer que nosso tema começou com cinema, em “Sob o sol da Toscana”, a personagem vivida por Diane Lane, escuta atentamente a história de São Lourenço, contada por um amigo que lhe presenteia com uma imagem do Santo garantindo que ele vai ajudá-la a aprender a cozinhar.

Viva São Lourenço! Viva os cozinheiros, suas receitas, seus livros, seus criadores e seu padroeiro!