O livro de receitas, por André Vasconcelos
Livro de receitas é quase como um diário, um relato histórico da vida de uma cozinha, onde valem rabiscos, páginas rasgadas, recortes de embalagens colados, enfim, é a mais pura tradução da alma do cozinheiro.
Na série fashion cook “O Urso”, o livro de receita do personagem Carmem “Carmy” Brezolatto vivido pelo extravagante Jeremy Allen White é uma coleção de anotações e desenhos irretocáveis da montagem dos pratos, um caderno de anotações que causa inveja a desenhistas sem talento como eu!
Veio de Roma o primeiro livro de receita que se tem notícia, “De re coquinaria”, com autoria dada a Marcus Gavius Apicius (30a.C – 42d.C).
Filho de cavaleiro, esse aristocrata passa mais tempo na cozinha que entre os cavalos que geram renda para sua boa vida, criando receitas um tanto bizarras, e segundo historiadores, demasiado indigestas e sofisticadas.
Línguas de flamingo, de pavão ou de rouxinol, crista de outras aves, calcanhares de camelos e até genitálias de porcas, aliás, a carne suína era ingrediente de mais da metade das receitas.
Este foi o único dos tratados latinos sobre o tema que chegou até nós, e talvez tenha sido salvo nos “sessenta segundos” de algum apaixonado por cozinha, pois ele data de pouco antes do grande incêndio de Roma, o que aniquilou quase totalmente a sede do Império.
Os historiadores atribuem esse incêndio ao tipo de construção comum em Roma neste período: prédios de até cinco andares construídos em madeira e com o fogo amplamente utilizado para cozinhar e aquecer os lares e onde, provavelmente por um acidente, o fogo surgiu e se propagou rapidamente devido ao vento forte.
Existe a versão que Nero ateou fogo em Roma para reconstruí-la com projeto arquitetônico que a tornaria ainda mais majestosa, mas na ocasião do sinistro ele nem na cidade estava.
A versão mais fantasiosa, e a que mais gosto, é que Nero ateou fogo para inspirar-se poeticamente, tanto que em “Quo Vadis”, filme de Mervyn LeRoy, Peter Ustinov na pele de Nero toca lira e declama enquanto Roma arde em chamas.
Mais poética ainda seria a cena de Nero salvando o livro de receitas “De re coquinaria” nos sessenta segundos a que teria direito.
O que temos hoje deste primeiro livro de receita é uma versão do século IV onde aparecem muitas receitas batizadas para homenagear lugares: peixe à Alexandria, salsichas da Lucânia, frango à moda de Partos.
Não faltam também receitas dedicadas a amigos do autor como tachinho à moda de Lucrécio ou minutal à moda de Apício.
A tempo, minutal é como Apícius chamava os alimentos muito picados, um tartar.
Assim como essa, muitas palavras que batizam receitas e técnicas ao longo do livro sequer existem nos dicionários de latim, donde se conclui que desde essa época os cozinheiros já gostavam de inventar palavras ou rebatizar técnicas como lhes aprouviam.
E por falar em técnica, vem desse livro a técnica de engorda de gansos com figos secos para utilizar o fígado gordo, o foie gras de hoje.
Dessa técnica de engorda veio o nome do órgão “ficatum” = fícus = figo = fígado.
Dentre as receitas, destaque para um creme doce a base de ovos batidos, leite e mel cozido lentamente em panela de barro que é até hoje a base para muitas sobremesas em todas as cozinhas.
Só se aprende cozinhar, cozinhando, ... e foi o que fez Gavius Apicius, ... e muito!!
Escreveu o filósofo Sêneca sobre sua morte: “Tendo despendido na cozinha cem milhões de sestércios e dissipado em cada um dos festins inúmeros côngios principescos, pressionado pelas dívidas, viu-se então compelido a examinar pela primeira vez as suas contas, calculou restarem-lhe dez milhões e, como se assim
ficasse reduzido a passar fome, pôs fim a vida envenenando-se”.
Difícil esse ofício de cozinheiro, tão glamourizado em tempos atuais e tão sacrificado em todos os tempos.
Nós, os criadores de livros de receitas, os cozinheiros de fato, temos como
padroeiro São Lourenço por um motivo que chega a ser cruel, quase um incêndio, mas com uma única vítima: perseguido política na Itália do terceiro século, Frei Lourenço foi queimado vivo em uma grelha, onde, diz o folclore popular, o religioso chegou a dizer a seu carrasco e algoz, enquanto assava sobre o fogo:
“Pode virar o lado que este já está pronto...”.
Certamente, se ele tivesse os sessenta segundos, se auto-salvaria !!
São Lourenço tornou-se assim um santo cozinheiro com uma auto-receita e, no dia de sua morte, em 10 de agosto, é comemorado o dia do cozinheiro.
Só para não esquecer que nosso tema começou com cinema, em “Sob o sol da Toscana, a personagem vivida por Diane Lane, escuta atentamente a história de São Lourenço, contada por um amigo que lhe presenteia com uma imagem do Santo garantindo que ele vai ajudá-la a aprender a cozinhar".
Viva São Lourenço! !
Viva os cozinheiros, suas receitas, seus livros, seus criadores e seu padroeiro!
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Sobre o autor
André Vasconcelos
Cozinheiro raiz e autodidata, hoje no comando de sua Cozinha Singular Eventos e d'O Vilarejo Hospedaria e Gastronomia, onde insumos e técnicas são a base de cardápios originais e exclusivos... e aprendiz de escritor também!
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