O irritantemente perfeito creme brûlée
Audrey Tautou, em uma interpretação magistral, se delicia com o ruído da casquinha caramelada de uma sobremesa clássica, em um filme que também já é um clássico: Le fabuleux destin d'Amélie Poulain! A obra é de Jean-Pierre Jeunet, diretor de filmes polêmicos e com muita comida, entre eles Delicatessen (cujo tema central é a gastronomia de uma forma bizarra), e Alien, a Ressurreição (onde os monstros espaciais tinham o péssimo habito de degustar astronauta-pesquisadores).
Em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, Jeuneut reserva uma cena para a delicadeza clássica de um creme brûlée. Já em o Casamento do meu melhor amigo, Julia Roberts descreve o creme brûlée como: maravilhoso, delicado e irritantemente perfeito. E, em uma comparação sarcástica com a noiva de seu melhor amigo interpretada por Cameron Diaz, ironiza que Michael, o noivo em questão, pode não desejar a perfeição de um creme brûlée, como se posiciona Cameron, mas sim a simplicidade de uma gelatina, como se auto-intitula Julia.
Bem, se Cameron Diaz é um creme brûlée e Julia Roberts é uma gelatina, muitos sonham ser enclausurados em uma doçaria qualquer para apreciar esses clássicos da doçaria universal. O fato é que esta sobremesa de origem controversa é quase uma unanimidade gastronômica. À base de leite, gemas e açúcar, sua superfície é caramelada pouco antes de ser servida, mantendo a textura delicada e levemente gelada do creme. Para os espanhóis, essa receita foi adaptada da crema catalana, já citada em anotações de cozinheiros no século XVII na Catalunha.
O burnt cream inglês, feito com leite gordo, também se coloca como ‘pai’ da invenção francesa. Vem da época das grandes navegações um irmão quase gêmeo do brûlée na culinária portuguesa: o leite-creme. É fato que os franceses assumem a sua criação nos idos de 1800 e o batizam de creme queimado, tradução literal de creme brûlée. Como toda arte, a gastronomia é dada à liberdade de interpretação e recriação. Uma releitura do creme brûlée marca minha memória gustativa: o brûlée de milho verde do chef Naim do Cantaloup.
E nestes anos de cozinheiro já me aventurei em várias combinações, umas certeiras e outras desastrosas. Mas nada como a receita original, onde uma orquidácea da América Tropical perfuma e dá personalidade a este clássico: a baunilha. Vale lembrar que durante muito tempo o cultivo da baunilha, alma da doçaria francesa, ficou restrito ao México, pois sua polinização só podia ser feita por uma pequena abelha nativa daquele país. Só em 1820, a partir do descobrimento de técnicas de polinização artificial, manual e totalmente artesanal, pode ser cultivada em outras partes do mundo, como Madagascar, onde são produzidas hoje as mais nobres favas.
Mas isso é assunto para outro longo texto. As variações do creme brûlée não ficaram somente em sobremesas. Combinações inusitadas, se valendo de gorduras que apresentavam texturas agradáveis, foram tomando conta de cardápios nobres. E, para o meu paladar, vale toda riqueza de sabor do foie gras para minha reinvenção do brûlée. Apesar de ser uma receita de poucos ingredientes e, teoricamente, muito fácil de ser executada, ela é “melindrosa”, tem “pegadinhas” e é “preguiçosa”, isto é, precisa de tempo e de paciência para chegar à textura perfeita para combinar com a crosta caramelada.
São cinco gemas de ovos caipiras em temperatura ambiente, nunca geladas, e setenta e cinco gramas de açúcar, temperado com meia, veja bem, meia pitada de sal! A pitada de sal parece ser uma medida muito aleatória, tipo “a olho” mesmo, mas não: uma pitada de sal é a quantidade de sal que conseguimos segurar com a junção do polegar e do indicador!
“Traduzindo” para medidas formais, uma pitada equivale e 1/3 colher de café! No caso do creme brulé, é metade disso, para não aparecer mesmo no paladar, mas para dar um toque de umami neste clássico francês. Misture em uma tigela esses ingredientes com um fuet, sem bater muito, mexendo até o açúcar “desaparecer”. Junte meio litro de creme de leite fresco, nunca aquele de caixinha, de lata ou mesmo a nata, mesmo que fresca.
Misture o creme e passe pela peneira fina pelo menos duas vezes. Abra uma fava de baunilha, retire as sementes de uma das metades e misture ao creme. Coloque em quatro forminhas de porcelana baixas e leve ao forno baixo (100°C) em banho maria até que fiquem firmes, com um leve balanço, mas com a superfície seca... entre cinquenta e sessenta minutos.
Leve para descansar na geladeira por quatro horas. Quando for servir, retire da geladeira com meia hora de antecedência, cubra com meia colher de açúcar demerara ou cristal, e caramelize com maçarico ou com um ferro de queimar, bem quente, como fazem os cozinheiros mais tradicionais que, apesar desse assessório quase não existir mais para ser comprado, é a forma que o caramelo fica mais uniforme!
E escute o som do caramelo sendo quebrado... Isso é música para o nosso paladar!