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Nem tudo é o que parece
A simplicidade congelada do camarão honesto

Foto: Reprodução

Publicado em 06/03/2019

Durante anos, muitos anos, fui assíduo de um restaurante em São Paulo, e de um só prato: o polpettone – nada que desmereça os outros, mas esse é especial! Diferente da polpetta, clássico italiano, o polpettone paulista mais parece um hambúrguer alto: a carne moída macia, perfumada com noz moscada, e recheio de queijo derretido que escorre se misturando ao molho de tomates, revelando harmonização de sabores como matizes indecifráveis da palheta de Miró. Durante anos, muitos anos, fui para minha cozinha disposto a decifrar esses matizes: usei os mais variados e nobres cortes de carne, da costela bovina ao lombo de vitelo ou rim de porco; fórmulas mirabolantes com a gordura de granito e até de pato, buscando algo que se assemelhasse à textura daquele prato.

No recheio, testei do gruyère da mais fidedigna procedência, ao requeijão de corte de Minas, e o queijo da Serra da Estrela, de Portugal. Para o molho, tomate italiano de cultivo orgânico aromatizado ora com uma única erva, ora com a combinação de muitas delas. Para finalizar, queijo parmiggiano reggiano de origem controlada. Nunca, nunca mesmo, cheguei perto do sabor do polpettone do Jardim de Napoli. Quando perguntado sobre a receita, Antônio Buonerba, o Toninho, o criador, cozinheiro e dono da casa, dizia para quem quisesse ouvir que a ‘massa’ do polpettone era feita de aparas de carne bovina, aparas das receitas mais sofisticadas do cardápio, moída e temperada com sal, noz-moscada e pimenta branca.

No recheio, somente uma boa mussarela em fatias finas. O molho de tomates é uma combinação de tomates frescos e pelados industrializados conferindo equilíbrio na acidez, cor e perfume. Finalizando, tudo é salpicado por um bom parmesão sem muitas denominações. Tanta carne, quilos de tomate, muitas cunhas de queijo, tanto dinheiro gasto, tanto tempo perdido, tudo por não acreditar na verdade dita por um cozinheiro. Geralmente para nós, meros mortais, auto intitulados seres humanos de inteligência superior, é mais fácil crer na mentira bem contada do que em uma verdade simplória.

E, passeando por cozinhas estreladas, encontrei mentiras bem contadas com verdades gastronômicas monstruosas: receitas “originais” copiadas de chefs renomados, molho de vinho do Porto confeccionado com vinho vagabundo temperado com mel, filés de robalo feitos com cortes de peixes desconhecidos maquiados com espumas e crostas “criativas”, falso-hadoques onde a defumação esconde o congro insípido e ressecado, entre tantas outras gastro-mentiras. Talvez por isso, muitas vezes definimos um bom restaurante como “cozinha honesta”, ou até, “onde come-se um camarão honesto”.

Mas o que é uma cozinha honesta sem enganações e sem aberrações? Sei que a boa cozinha não é feita de segredos e disfarces, mas de ideias, composições harmoniosas, produtos de boa qualidade, sensibilidade, bom senso e humildade para aprender sempre. Isto sim é uma cozinha honesta! E o que dizer do “camarão honesto”? Talvez aquele que não desvie verbas, contrate crustáceos parentes e muito menos negocie propinas para aprovação de projetos submarinos fantasmas. Ele, o camarão honesto, pode ser encontrado em muitos cardápios, difícil falar o mesmo de “político honesto”, esse sim, um animal quase extinto.

De tamanho proporcional ao preço cobrado, textura firme, personalidade no seu sabor e aroma, o camarão honesto e a maioria dos produtos que entram em uma cozinha honesta, devem ser invariavelmente frescos. E fresco não no sentido de ter sido recém pescado, luxo de poucos que vivem à beira mar, mas sim de ter boa procedência e ser manipulado mantendo suas características, mesmo que congelado. E quando existe essa preocupação, o “camarão honesto” pode freqüentar o cardápio em qualquer canto do mundo, pois congelar não é um assassinato do sabor.

Se congelar “mata” as características do alimento como pensam alguns “gourmets”, uns “experts” e muitos “chefs”, o que dizer do hadoque, sempre congelado, do foie gras congelado, da vieira do Pacífico, e do atum azul tão festejado na cozinha clássica japonesa e em alucinações contemporâneas? Um par de niguiris de atum azul chega a custar U$50 em casas especializadas, e esse atum, assim como a maioria dos peixes, é negociado congelado. Ou alguém com bom senso acredita que ele chega vivo ao distribuidor e à peixaria? Para tal, os grandes barcos-atuneiros precisariam trazer esses peixes em gigantescos aquários no seu interior, ou em coleiras com as guias atadas na popa dos barcos para que eles chegassem vivos ao porto após meses no mar.

Na nossa procura arrogante pelos produtos realmente frescos, muitas vezes a mentira é mais palatável, mais romântica, e acreditamos em atum “fresco” e até em bacalhau “fresco” exposto em balcões de peixarias. Alguns destes peixes “frescos” em vitrines dos mercados não têm como não ser peixes descongelados, caso contrário, teriam que ter vindo em vôos diretos da Europa e Ásia nas poltronas de primeira classe com o ar condicionado no máximo. E essa mentira congelada não é a única nas cozinhas estreladas, a mentira é a regra grosseira para garantir o sucesso, e mentira é a essência do marketing.

Marketing é regra única, pois ele cria as mentiras bem contadas que são bem mais valiosas que as verdades simplistas, e o marketing, na cozinha e na vida moderna, virou a verdade única que cria políticos, restaurantes e marcas ao seu bel prazer. Felizmente toda regra tem exceções, e enquanto as exceções existirem, poderemos apreciar o polpettone do Jardim de Napoli, o camarão honesto servido em mesas simples de Floripa e cozinhas maravilhosas e criativas pelo Brasil e mundo afora!