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Da coroa a moussaka, por André Vasconcelos

A coroa de cordeiro, tão simples e tão complexa, ilustra como a culinária pode se tornar um reflexo de memória e emoção. (Foto: Divulgação)

Publicado em 28/11/2024

No HD da nossa memória, imagens, aromas, sabores, cores e formas se materializam nos remetendo a momentos únicos.

Foram muitos momentos gastronômicos inesquecíveis, na maioria das vezes como convidado, pois não tinha cacife para bancar todo aquele luxo dos idos anos 1980.

Num desses meus momentos, lembro do garçom retirando, quase em câmera lenta, o cloche de prata brilhante no glamoroso Fasano, no antigo prédio projetado por Gil Germain Donnat, com pé direito altíssimo, piso em mármore xadrez e cadeiras do designer Ludwig Mies Van Der Rohe.

No prato com o timbre do restaurante, revelou-se a coroa de cordeiro magistralmente confeccionada pelo chef Luciano Boseggia, um ícone que brilhou naquela cozinha por muito tempo, que, na minha opinião, o melhor que já comandou aqueles fogões.

Naquele momento incorporei à minha vida a alta gastronomia.

Não só pelo sabor do cordeiro, que aliás poucas vezes provei um igual, mas pela irrepreensível forma.

E isso porque nem sou um fã ardoroso dessa carne.

Mas os ossinhos das costelas dispostos quase que milimetricamente sobre uma guirlanda de carne marrom aveludada, tudo circundado pelo molho que mais parecia um creme de chocolate de tão denso e brilhante.

O design, em todas as suas formas, é uma arte apaixonante.

E aquele prato tinha design: tão perfeito quanto uma mandala, tão marcante quanto o olhar da primeira namorada, tão belo quanto as pétalas de uma rosa, tão único quanto o arroz com feijão da vó...

 Entendi o design da gastronomia e acho que ali resolvi, inconscientemente, estudar “o cozinhar” para, quem sabe um dia, poder ser autor daquela obra.

Mesmo que seja uma cópia, mesmo que seja uma versão, mas que exprime tudo aquilo que senti naquele momento e, literalmente, coroar a minha vida de cozinheiro.

Muitas costelas de cordeiro torraram nos anos que se seguiram e muitas coroas de cordeiro mais pareciam pneus de velocípede cravados de gravetos disformes!

Quanto ao sabor: alguns bons, uns razoáveis e muitos desastrosos!

Não sei ao certo por que depois de vencer essa guerra com o cordeiro - ao menos acho que venci - a coroa de cordeiro nunca fez parte de nenhum cardápio do meu extinto Bistrô.

Talvez por receio de quebrar o encanto daquele meu “momento único”.

Talvez por receio de não encantar meus comensais como me encantei naquela noite no Palácio da Gastronomia.

Talvez porque o cordeiro sempre foi envolto por um encanto quase religioso.

Dizem até que o cordeiro era o prato preferido de Jesus, provavelmente não em forma de coroa, que Marta, irmã de Lázaro, o preparava magistralmente.

Hoje a padroeira dos cozinheiros é essa santa cozinheira de cordeiros: Santa Marta.

Criado desde a Grécia Antiga, o carneiro faz parte da história da humanidade.

Vive no nosso imaginário a imagem de tribos migrando de um lado para o outro com seus rebanhos de carneiros, e de seus filhotes: os cordeiros.

Símbolo de várias religiões, esse animal supria os nômades de leite e queijo, de sua lã vinham as roupas, e sua carne era sempre o prato principal de festas e comemorações religiosas.

A fidelidade deste animal é tão clara, que muitas vezes fazemos deles metáforas para muitas expressões: cordeiros de Deus, fiel como cordeiro, o rebanho do Senhor...

Na história da alimentação, o carneiro era mais utilizado do que o seu filhote, pois, como estes só nascem no inverno quando era necessário o consumo de carnes mais fortes e gordurosas dos animais adultos, os cordeiros cresciam rapidamente e logo deixavam de ser cordeiros, com sua carne leve e quase adocicada, tão apreciada na alta gastronomia moderna.

Hoje, criado em cativeiro, próprio para o abate, conseguimos apreciar essa iguaria nos mais diversos pratos aproveitando todas as etapas de evolução: do cordeiro ao carneiro, compondo pratos como a coroa de cordeiro do meu imaginário e o clássico gigot d´agneu, ou, perna de cordeiro, que poucas vezes me atrevi a servir em meus cardápios.

Recentemente, uma plataforma de gastronomia ranqueou os melhores pratos do mundo que levam cordeiro ou carneiro como elemento principal.

Entre as cem mais bem avaliadas pelos usuários dessa plataforma, nenhuma receita vinda das cozinhas brasileiras!

Até bode faz mais sucesso por essa bandas do que o cordeiro!

Talvez porque o cordeiro frequente somente boutiques de carnes e restaurantes de alta gastronomia, não está no cotidiano dos brasileiros!

Ou até porque o seu consumo da forma mais popular, está ligado a colônias de imigrantes que fazem de muitas cidades brasileiras, uma verdadeira Torre de Babel.

No pódio dos melhores pratos de cordeiro, Síria, Grécia e Turquia lideraram… 

A Síria lidera o ranking com o Shakriyeh, um ensopado feito com iogurte e alho frito, além de diversas ervas e especiarias tão características da comida síria… um prato muito aromático servido com o aromático arroz basmati!!!

Logo depois, a Grécia com o Païdakia: costeletas marinadas com limão e ervas frescas, e muito azeite… e com o molho tzatziki, molho tradicional que também tem o iogurte como base, e o pepino para dar a refrescância.

Em terceiro o Cağ kebabı, da Turquia… um clássico Kebab.

Como brasileiro que sou, acho que o moussaka - um cozido com carne de cordeiro moída, beringelas e molho branco - servida na cozinha de um pequeno restaurante na Rua da Graça em São Paulo, teria lugar de honra nessa lista!

Mesmo sendo esse restaurante totalmente grego, com culinária grega, com donos gregos e seus filhos gregos, música e azeite grego, quem conhece essa pequena Grécia no Bom Retiro, sabe o quanto esse lugar é brasileiro!!! 

E vamos festejar a cozinha brasileira de todos os povos!

 

 

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Sobre o autor

André Vasconcelos

Cozinheiro raiz e autodidata, hoje no comando de sua Cozinha Singular Eventos e d'O Vilarejo Hospedaria e Gastronomia, onde insumos e técnicas são a base de cardápios originais e exclusivos... e aprendiz de escritor também!


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