Cozinhando no cinema, por André Vasconcelos
Muitas vezes escutamos falar de gastronomia como arte culinária!
Porém, a grande maioria não acredita que seja arte... é só culinária!
Arte tem conceito, autor e reconhecimento!
Culinária tem muito trabalho, dedos queimados e pouco reconhecimento e, oficialmente, o cozinheiro não é reconhecido como autor de nenhuma receita, mesmo porque, apesar dos cursos técnicos e superiores em Gastronomia no Brasil, a profissão “cozinheiro” ainda não é regulamentada, vivemos à margem do mundo real!
No mundo gastronômico, isto é, entre os que vivem a cozinha e para a cozinha, até encontramos autores para muitas receitas, com estórias bonitas e originais, mas não passam de estórias, uma compilação de sabores que estão guardados no subconsciente de quem tem como objetivo cozinhar bem e dar prazer através do paladar.
E são muitos os casos em que receitas surgem quase que simultaneamente em vários lugares: franceses, ingleses e catalães disputam a origem do crème brulée, e sem um cozinheiro como autor dessa obra de arte, mas a primeira referência histórica, é um creme francês e se encontra no receituário Nouveau cuisinier royal et bourgeois de François Massialot, publicado no ano de 1691... sem autor conhecido!
Pode ser um magret de canard au poivre vert ou um feijão com arroz ao pinot noir!
Por mais que seja original e inédita, receitas não têm autor reconhecido, nem legalmente, nem informalmente.
Receitas, no conceito usual, são criadas ao “Deus dará” e quem as criou não tem a menor importância!
Mas é arte!
Ou pelo menos dizem que é!
Arte culinária!
E quando falo em arte, viajo gastronomicamente à sétima arte: o cinema.
Sempre me intrigou: por que o cinema é a sétima arte, e a gastronomia, apesar de ser arte culinária, não está entre as outras seis artes?
Tudo começa na esplendorosa Grécia Antiga, mas só no século XVIII, o filosofo francês Charles Batteux criou o termo “belas artes”, e listou o que representaria a beleza, o que seria reconhecidamente arte: pintura, escultura, música, literatura, dança e arquitetura!
Fico pensando: o Batteaux não devia ter um bom cozinheiro ou, então, não gostava de comer... talvez gostasse do tataravô do McDonalds da França nos idos anos 1700, ou então tivesse um paladar infantil influenciado pela Coca-Cola Medieval!
Mas é fato que, só em 1923, a partir do “Manifesto das Sete Artes”, do italiano Ricciotto Canudo, é que o cinema passou a fazer parte desta lista... a sétima arte!
E a gastronomia???
Mesmo não sendo oficialmente uma arte, fez história na sétima arte, tendo até um livro brasileiro com esse tema: “O cinema vai a mesa”, do meu saudoso amigo Rubens Ewald Filho.
E, falando da sétima arte, talvez o filme francês de 1938, “Mulher do Padeiro” seja o primeiro onde a gastronomia é destaque, e dali vieram muitos outros: “O marido de minha mulher” de 1963; “Comilança” de 1973 – destaque para Marcello Mastroianni e Ugo Tognazzi -; “Quem está matando os grandes chefs” com a belíssima Jaqueline Bisset de 1978... entre outros tantos saborosos, divertidos e instigantes filmes culinários!
Porém, o mais emblemático, para mim, é “A festa de Babette”, que descreve um jantar oferecido por uma cozinheira que investe todo o prêmio que recebe em uma loteria, a paroquianos e a um pastor no seu centésimo aniversário...
Já escrevi algumas vezes sobre esse cardápio que, aliás, reproduzi alguns pratos e até todos os pratos em alguns jantares!
É uma aula de gastronomia e de harmonização como poucas vezes tive a felicidade de assistir.
Para os politicamente corretos pode ser pesado demais: na entrada, uma sopa de tartarugas gigantes e, no prato principal, o foie gras: o filme é histórico e não há como mudar a história como têm virado rotina em muitos roteiros.
O negacionismo está tão impregnado na sociedade conectada que tem afetado até a sétima arte e a gastronomia.
Muito provável que logo veremos filmes veganos, com o homem de neanderthal tomando leite de soja harmonizado com hamburger de beterraba!
Vale destacar no cardápio de Babette, a perfeita harmonização na seleção dos vinhos: do Xérès (grafia francesa para Jerez), um vinho fortificado, sabidamente consumido naquela época, ao Grand Cru Clos de Vougeot, passando pela Veuve Clicquot, o champagne preferido do pintor Claude Monet à época, e finalizando com o pouco conhecido Marc de Champagne, uma grapa feita com o bagaço das uvas da região servido com o café!
Uma obra de arte da sétima arte com sabores que marcam o bom cinema e a boa gastronomia.
Vale destacar também um filme produzido em 2022 que trata a gastronomia como arte, a mais pura arte, e o serviço é quase uma peça teatral, onde o grande astro é o ego de um cozinheiro!
Aliás, o ego tem aparecido muito mais que os sabores em vários restaurantes estrelados, parece ser o tempero preferido da nova gastronomia.
“O Menu” tem entre os autores Will Tracy, que afirma ter se inspirado em uma experiência pessoal, segundo ele, claustrofóbica, em um restaurante de luxo na Noruega: “Há algo implacável em todos esses menus de degustação. Você não pode ir embora. Você está sendo mantido refém de uma história que eles contam por horas", diz o roteirista.
No filme, um jovem casal viaja para uma ilha remota onde está um restaurante exclusivo de um fictício, embora muito real, cozinheiro: o chef Slowik, interpretado brilhantemente por Ralph Fiennes.
O cardápio é tratado como arte conceitual que chega a extremos, apresentado de forma genial com sabores que parecem sair da tela e cativar nossa imaginação. Destaque para a sobremesa que encerra o filme de forma inusitada e assustadora!
Esse filme vale não só pela arte culinária ou pela sétima arte, ele nos leva a pensar até que ponto o ego de um ser humano pode ser inflado até transformá-lo em um ser desumano.
Talvez o dia em que as cozinhas e os cozinheiros tomarem consciência que o sabor é mais importante que o ego, e que a arte é uma forma de expressar emoções, história e cultura visando harmonia e equilíbrio, tenhamos a culinária respeitada como arte e as receitas como obras de arte...
... e os cozinheiros como artistas!
Assista ao trailer do filme “O Menu” clicando AQUI.
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Sobre o autor
André Vasconcelos
Cozinheiro raiz e autodidata, hoje no comando de sua Cozinha Singular Eventos e d'O Vilarejo Hospedaria e Gastronomia, onde insumos e técnicas são a base de cardápios originais e exclusivos... e aprendiz de escritor também!
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