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A verdade na gastronomia
O “politicamente correto”, na maioria das vezes é pura jogada de marketing, mentira disfarçada com bom discurso e performance

Foto: Reprodução

Publicado em 02/09/2019

É interessante como alguns símbolos estão enraizados em nossa memória! Pensamos em Natal, vem à mente a imagem do Papai Noel. Páscoa, coelhinho e ovos de chocolate. Sete de setembro, D. Pedro I gritando “Independência ou morte”. Época de eleições, o Pinóquio e seu nariz crescendo. A história do menino de madeira foi escrita pelo italiano Mario Collodi em 1881. Pinóquio era um menino egoísta que, no conto, chega a ser torturado pelas suas maldades, entre elas, a de esmagar o Grilo Falante com uma maleta.

Quando Walt Disney, em 1937, resolveu fazer desse conto um filme animado depois do grande sucesso da Branca de Neve, os roteiristas acharam que o boneco de pinho não teria força suficiente para protagonizar a estória. Valorizaram então o papel do Grilo Falante, que ressuscitou da maletada para ser a sua consciência, a grande estrela de um dos melhores filmes de Disney. Pinóquio então virou um boneco do Grilo.

Com jeito doce e inocente, o Grilo controlava, dizia o caminho a tomar, como se comportar e ditava as diretrizes de sua vida. Nascia aí o marqueteiro político, a consciência de um, literalmente, cara de pau mentiroso. Mas os Pinóquios e suas mentiras não são presença constante só na política. Vivem no dia-a-dia de muitas profissões neste país, que já foi o país do futuro, mas este, passou nas mãos de uma marionete com nove dedos. E se analisarmos friamente, a mentira é a base da sociedade moderna.

Novelas sem mentiras zerariam no Ibope, assim como tramas literárias sem mentiras ardilosas mofariam nas prateleiras. No cinema, roteiros se valem, valorizam e satirizam a mentira. Jim Carrey é um advogado que não pode mentir em “O Mentiroso” e é vítima de uma mentira cenográfica em “A vida de Truman”. No irreal “O Primeiro mentiroso”, as personagens vivem onde não existe mentira e, quando o protagonista descobre que pode mentir, sua vida muda ... para melhor! A mentira pode ser um problema, um remédio ou até uma doença: a parafrenia, uma neurose onde o doente passa a acreditar e viver suas mentiras. Os doentes convivem em nosso reino sem muitas vezes demonstrar sua psicopatia

E, enquanto isso no reino da culinária, “Pinóquios” vão transformando este mundo de sabores, cores, aromas e texturas em uma parafrenia total, onde o chef é um personagem bem ensaiado, e os comensais, espectadores iludidos ou cúmplices enfeitiçados pelas mentiras dadas como verdade pela moda gastronômica. Tanto que, para ser um chef reconhecido atualmente, é condição “sine qua non” citar alguma escola clássica francesa ou algo que o valha e dê glamour.

Com esse trunfo na mão, descola-se um emergente descolado ou um ricaço sem expressão querendo se projetar, monta-se um cardápio lotado de tendências e tecnologias “à la El Bulli”, sendo que a maioria são mentiras - mas isso não faz mal, vivemos no Brasil – e “voila”: surge mais um estrelado e premiado restaurante.

E, para a maioria de clientes ávidos por novidades, não faz diferença se o bacalhau anunciado como gadhus mohua é ling, muito menos se a redução de vinho do Porto é feita com um vinho vagabundo produzido em regiões em onde nem uvas existem! Tomam como verdade e se deliciam com a terrine de foie gras batizada com fígado de porco, aliás, foie gras para os chefs moderninhos está fora de moda, afinal, os gansos sofrem muito para produzir essa iguaria.

Mas, mentiras e radicalismos à parte: e as vacas, galinhas, perdizes, esturjões, meros, caranguejos (cozidos vivos), lagostas e outros bichos... não sofrem?

Será que, com exceção dos gansos e patos com seus foie gras, os animais se matam voluntariamente para dar prazer e alegria às mesas dos humanos? Como no título do filme de Al Gore: é tudo mentira! Inclusive posturas radicais! O “politicamente correto” das cozinhas de tendências, na maioria das vezes é pura jogada de marketing, mentira disfarçada com bom discurso e performance. Mentira também produzir alta gastronomia, criativa e recheada de técnicas clássicas e contemporâneas, com baixo custo: por mais baratos que sejam os insumos, o que mais vale é a criação, e esta, tem valor inestimável. Fortunas são pagas por campanhas publicitárias, que são somente ideias, onde o único insumo é uma mente com conhecimento e criatividade.

Se fossemos avaliar uma ideia por insumos, na publicidade pagaríamos tão somente pelo valor do grafite usado para esboçá-la, assim como em arquitetura, rabiscos de gênios como Niemeyer e Frank Gehry custariam centavos. Genial é fazer de um ovo frito na manteiga um prato inesquecível por sua textura! Genial é fazer da farinha e água com azeite e alho um talharim de causar suspiros. Genial é criar com um insumo usual, um prato magnânimo.

Genial é ter verdade nas receitas desde a sua concepção até a sua apresentação. Procuro sempre essa verdade e, modestamente, confesso, muitas vezes consigo. Talvez para muitos, essa procura da verdade em tudo, inclusive na cozinha, possa soar como hipocrisia, mas esse é meu discurso mais verdadeiro. E assim como tenho minhas ideias e verdades gastronômicas, estudo, escuto, degusto e teço comentários gastronômicos com total liberdade literária, para não dizer jornalística, em pretensas crônicas que se apresentam como essa. Viva a democracia gastronômica e a liberdade de expressão.

E como escreveu o escritor e filósofo iluminista francês Voltaire, cujo nome era mentira, pois o verdadeiro era François-Marie Arouet, a liberdade de expressão é um bem de valor tão inestimável quanto o da criação. E me orgulho de terminar esse texto com uma frase deste pensador: “Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las”.