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A emocional cozinha afetiva, por André Vasconcelos

Minichef Remy em cena da animação Ratatouille (Foto: Internet/ Reprodução) **Clique para ampliar

Publicado em 01/06/2023

A cozinha afetiva - ou confort food, para os hypes -, é a palavra gastronômica do momento. São pratos que nos trazem leves lembranças, nos remetem a momentos felizes, nos confortam e nos fazem abrir um sorriso!

O aroma do toucinho na panela, do feijão cozinhando, do refogado de alho e cebola no preparo do arroz, da manteiga com cheiro verde envolvendo as batatas, e até o aroma do pão assando na padaria da esquina tomando conta de toda a rua. 

Aromas e sabores que nos fazem viajar no tempo e suspirar de saudades.

Poucas coisas descrevem tão bem essa emoção que chamamos de “cozinha afetiva” quanto a cena da animação Ratatouille, um cult da Pixar, onde o crítico gastronômico impressiona-se com a apresentação da versão de prato clássico criado pelo minichef Remy, um rato com um talento especial para cozinha: ratatouille, que nada mais é que um cozido de legumes!

Ao prová-lo, o rígido crítico Anton Ego viaja até a sua infância com a lembrança de sabor guardado em um lugar protegido e especial da sua memória.

É esse sentimento que define essa cozinha!

Nem sempre essa comida é comida de mãe, pois muitas mães não têm talento para cozinhar, e isso não é pecado nem ofensa! 

E talvez nem comida de vó, pois se alguém tem uma avó como tive, sabe o que é comer simplesmente para não passar fome, deixando de lado o prazer à mesa!

Que Deus a tenha… como amiga e conselheira, mas não como cozinheira!

A lembrança de vó e comida, também nos remete a um livro que reúne muitas receitas da cozinha afetiva, presente em grande parte das cozinhas brasileiras nas últimas nove décadas: “Dona Benta, comer bem”!

Na capa, a imagem da Dona Benta, personagem de Monteiro Lobato que embalou gerações com seu cabelo branco preso em um coque com um bolo na mão, sendo admirados pelos olhos melados de Pedrinho, um dos seus netos.

Porém, a meu ver, a imagem de Dona Benta cozinheira é quase uma fake news!

Li algumas vezes toda a coleção de Monteiro Lobato, e, posso estar enganado, não me recordo de nenhuma cena da vovó Dona Benta cozinhando!

Estava sempre bem impecável aconselhando, servindo e contando histórias e estórias!

Tia Nastácia, essa sim uma grande cozinheira… criando memórias afetivas nas crianças e nos personagens daquele sítio mágico.

Um retrato da sociedade da época que aos poucos se torna um passado com páginas tristes que devem ser revisitadas para não se repetirem, mas não podem gerar mais ódio e mágoa!

Voltando ao livro que foi lançado em 1940, com uma proposta ambiciosa e arrojada: o diretor da Companhia Editora Nacional notou que eram raros os títulos de culinária nas livrarias, e partindo de um antigo caderno de receitas de família, somou o que coletou entre as famílias tradicionais de São Paulo, e também uma seleção de receitas clássicas, tanto brasileiras quanto da culinária internacional,  para criar esse livro que já está na sua 77ª edição com milhões, sim, milhões de exemplares vendidos!

Nasceu ali o maior compêndio de culinária afetiva do Brasil. 

Uma cozinha que não tem uma definição específica e única!

Pode ser de um cidadão, de uma cultura ou de uma população!

Alguns definem como uma comida simples, mas pode ser complexa!

Algumas vezes é leve, mas por vezes é pesada e gordurosa. 

Produtos frescos? 

Nem sempre, ultraprocessados, salgadinhos de pacote e até Qsuco pode fazer parte do leque de cozinha afetiva de alguém.

Como tudo que tange gastronomia, controvérsias são o tempero, e mundo afora, a cozinha afetiva tem formas ainda mais estranhas.

O estômago de ovelha recheado com lascas do pulmão, coração e outros miúdos, cozido por horas a fio e servido com nabos pode ser a comida afetiva de quem nasceu na Escócia… o haggis é uma confort food na terra do uísque.

No Brasil temos o sarapatel, uma versão desse haggis, vindo da culinária indo-portuguesa com toques dos povos originários … uma cozinha afetiva de muita história e memórias.

E o que dizer do hakarl, uma carne de tubarão deixada para se decompor no solo por alguns meses e depois colocada em peneira por mais alguns meses até se tornar uma polpa branca… essa deve ser a cozinha afetiva de muitos islandeses. 

Crocantes tarântulas fritas com alho e sal é uma iguaria para os cambojanos, mas também os remete à lembrança dos campos de morte do Khmer Vermelho, uma lembrança dos tempos horríveis que o país passou e é a cozinha afetiva da nação.

No nordeste da Índia, festas e confraternizações familiares tem como prato principal ratos cozidos sobre vegetais folhosos, mas não consigo me alongar na definição desta cozinha afetiva.

E mundo afora, as comidas afetivas se apresentam das mais diversas formas, como os caracóis da Borgonha, o vinho de cobra do Vietnã, o queijo podre da Sardenha ou mesmo o turu, um molusco que parece uma minhoca albina de um metro da Ilha do Marajó!

E como dar uma nova roupagem a essas memórias gastronômicas em forma de pratos contemporâneos sem perder toda essa carga emocional?

Um desafio para chefs e cozinheiros.

Há quem diga que “a tal de cozinha afetiva é uma desculpa para chefs sem criatividade repetirem receitas ultrapassadas”... declaração polêmica dada por um conceituado chef que não me atrevo a citar!

A cozinha afetiva revisitada… talvez esse seja o maior desafio de quem trabalha com gastronomia nesse tempo de ifoods, fast foods e fake foods.

Fazer de uma refeição banal, uma experiência gastronômica única. 

Mais que sabores, trazer sentimentos nos pratos!

Mais que sofisticação, apresentar memórias em forma de receitas!

A gastronomia é uma arte viva que deve valorizar as emoções, as técnicas e os insumos!

E o cozinheiro é o grande maestro desta orquestra de sabores.

Bom apetite!

 

 

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Sobre o autor

André Vasconcelos

Cozinheiro raiz e autodidata, hoje no comando de sua Cozinha Singular Eventos e d'O Vilarejo Hospedaria e Gastronomia, onde insumos e técnicas são a base de cardápios originais e exclusivos... e aprendiz de escritor também!


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