A cozinha Catarina de José Hugo
A essência deste texto eu escrevi para a abertura de um livro sobre cozinha brasileira do meu amigo José Hugo Celidônio, que nos deixou semanas atrás. Paulista de nascimento, na década de 1950 morou em Paris, onde desenvolveu sua arte de cozinhar, e na volta se instalou no Rio de Janeiro onde fez história, sendo um dos primeiros profissionais a unir a cozinha nacional à francesa e a popularizar o carpaccio em terras cariocas.
É certamente um dos maiores nomes da gastronomia brasileira! Ele me procurou para falar sobre a culinária do estado onde cresci nesta profissão, a de fazer comida, e eu, cozinheiro e publicitário, passei a pesquisador da história e das receitas que marcam a gastronomia catarinense... do extremo oeste ao litoral. A pesquisa foi feita informalmente entre conversa com amigos de famílias tradicionais e alguns poucos estudiosos da área, pois pouca informação escrita havia sobre a formação da cozinha de Santa Catarina, e, na maioria dos textos de cozinha brasileira, não existia sequer um parágrafo sobre a cozinha catarinense.
Pode ser impressão minha, mas quando falam de cozinha brasileira, o dendê e o jambú parecem ser unanimidade nacional. Quando falam de comida brasileira, o vatapá parece estar presente na mesa do dia a dia de todo brasileiro, alternada com o pato no tucupi e a farofa de formiga. Quando falam de gastronomia brasileira, costelinha de tambaqui parece ser o nosso quitute preferido para acompanhar a cachaça que também faz parceria com o baião de dois!
Ora pois, somos brasileiros também... este pequeno estado do Sul também é um “país brasileiro”, e Santa Catarina faz parte deste enorme circo chamado Brasil! Aqui está a terceira cidade mais antiga do país: São Francisco do Sul foi fundada por uma expedição francesa comandada por Binot Paulmier de Gonneville, no ano de 1504. Somos um estado rico em influências culturais, o que resultou uma gastronomia variada e complexa. Foi a partir do século XVII que os Bandeirantes vindos de São Paulo começaram a real colonização do estado, trazendo consigo as tradições e os alimentos típicos de sua cultura, entre eles o engenho para produzir farinha de trigo, cereal que não se desenvolveu na região.
Depois deles vieram os açorianos, no século XVIII, um momento marcante para a caracterização cultural e gastronômica da costa catarinense. E, com eles, surgiram as primeiras miscigenações da cultura local com a de imigrantes. Vindos de uma ilha onde a pesca era difícil e acostumados, portanto, ao trigo e à carne de boi, esses açorianos foram obrigados a adaptar-se ao que a terra ocupada pelos índios kaigangs, xoklengs e, principalmente, pelos carijós, lhes oferecia.
Os moinhos que produziam a fina farinha de trigo, então quase abandonados pela falta de matéria prima, foram adaptados para produzir a farinha com um alimento da terra: a mandioca. Surgiu assim um produto típico e único na cultura gastronômica brasileira: a farinha de mandioca finíssima, usada para o tradicional pirão branco, ou de nailo (nylon), tão difundido no litoral.
Além disso, a terra não era tão fértil como a de suas ilhas de origem, obrigando-os a buscar no mar o seu sustento e tornando-os não só excelentes pescadores, mas também exímios construtores de barcos. Na segunda metade do século XIX com uma Europa em transformação com guerras territoriais, escassez de terras e falta de empregos em função da Revolução Industrial, provocando um grande êxodo, o Brasil foi redescoberto pelos europeus em busca de uma vida melhor.
Em função do clima, Santa Catarina era convidativa para os alemães, os primeiros não lusitanos a aportarem cheios de sonhos e esperanças. “Fazer a América! ” era o lema do povo italiano, que veio em seguida ocupando o litoral sul e a região serrana com um novo jeito de viver: mesas fartas, musicalidade, bom vinho e muito barulho. Essa foi a maior corrente migratória do estado, tanto que hoje, quase a metade da população tem origem italiana. Os poloneses e ucranianos trouxeram em sua bagagem o centeio, o trigo sarraceno e a batata inglesa, além de pratos de origem eslava com pronúncia difícil e sabores marcantes. Os húngaros, cuja culinária às vezes se confunde com a alemã, nos ensinaram a misturar o doce com o salgado e introduziram o goulash na cozinha Catarina.
Ainda no final do século XIX, fugindo do Império Otomano Turco, os árabes ocuparam várias regiões do estado com sua cozinha exótica e peculiar. Os gregos também vieram nessa onda e se instalaram em uma charmosa ilha que remetia à terra natal e ali firmaram seus nomes, sua comida e seu comércio. O spatzle, uma espécie de nhoque com farinha e leite gordo, chegou com os austríacos na década de 1930, junto com a sheiterhaufen, uma tradicional torta de maçã. Os japoneses chegaram nos idos dos anos 1960 com suas cerejeiras, pêras e bambus.
Enfim, com toda essa diversidade gastronômica e com as adaptações de receitas aos produtos locais no decorrer da história, além da sutileza das diferenças étnicas, fica difícil localizar a origem exata de cada prato que compõem nosso cardápio Catarina. Rodando menos de cem quilômetros, é possível apreciar sabores que nos remetem a pontos opostos do planeta, e outros que parecem únicos no universo. Assim é a cozinha de Santa Catarina: única e com sabor da união pacífica de várias culturas... e na qual fiz minha estória nas últimas décadas. Do frescal serrano à tainha escalada do litoral, passando pela fortaia, churrasco, polenta no fio e cuca, salve os sabores de Santa Catarina!