A complexidade de ser simples..., por André Vasconcelos
... ou talvez a simplicidade de ser complexo.
É de um antagonismo ímpar: quanto mais descobrimos as maravilhas de uma alimentação correta, mais complicado fica comer.
Além de chato e de sabor duvidoso.
Comer bem já não é comer bem como era comer bem quando ainda não sabíamos o que era comer bem.
Difícil acompanhar o raciocínio?
As mães de antigamente, não do antigo Egito, mas de um Brasil-ditadura, nos entuchavam comidas das mais variadas possíveis: de caldo de mocotó a bife de fígado, de gema de ovo crua às colheradas de emulsão Scott, de sopas enigmáticas com todas as espécies de legumes de sabores esquisitos a overdoses de Calcigenol.
O legal era ficar “fortinho”, corado, com as bochechas redondas, qualidades à época que nós, “as vítimas” de toda essa saúde, lutamos até hoje tentando perdê-las.
Comer bem... e sempre... e de tudo: eram as palavras de ordem.
Como raciocinar “comer & cozinhar” priorizando antioxidantes, polifenóis, nutracêuticos, ômega 3, ômega 6 ou probióticos, sendo que esses são somente a ponta do iceberg do vocabulário da cozinha saudável e moderna?
Comer uma tigela de grãos sem sabor, sem prazer e sem graça passou a ser um procedimento terapêutico e “fashion” ... desde quando?
Onde foi parar o prazer de comer??
Comer só pensando no ser saudável deixando o prazer de lado, é como fazer sexo só pensando na função reprodução, e não na gama de sensações que ele traz!
Ora pois, estamos, sim, passando fome com essa cozinha moderna pseudo-nutricional... fome de prazer!
Quanto mais estudo o assunto nutrição, mais confuso fica o assunto culinária.
A margarina que já foi a solução para a má gordura da manteiga, e até sinônimo de família feliz, hoje é execrada nas dietas saudáveis.
O ovo, que foi herói na minha infância, passou a ser bandido na minha juventude, foi banido no início da minha vida adulta e hoje voltou a ser um grande alimento!
O azeite de oliva, o santo milagroso do começo desse século, hoje está na mira dos que defendem as dietas com poucas calorias!
A manteiga clarificada, a ghee, ganha terreno!
Mas a manteiga não era uma bandida?
E se colocarmos na berlinda as comidas regionais?
Os nutri-corretos correm o risco de ter um colapso, ou uma congestão cerebral.
Acarajé e seu azeite de dendê uber-saturado, porco na lata e sua banha anti-saúde, buchada de bode com carnes que nem o bode sabia que tinha, churrasco entope-veia clássico dos domingos em família... enfim... não conheço nenhum cardápio regional brasileiro em que a alface, os flocos de aveia ou o leite magro sejam as estrelas!
Com alimentação funcional, nutrológicamente equilibrada, saudável e natural, as gôndolas dos empórios e supermercados estão cada dia mais farmacêuticas.
Amaranto, quinoa, linhaça dourada, feijão azuki, farinha de banana verde, óleo de uva, berinjela liofizada, enfim, são tantas coisas com o mesmo sabor de nada que seria mais prático se adotássemos a alimentação por pílulas!
Isso sem falar nos complementos alimentares apresentados em latas de pós que longe estão de ser o mágico pó de pirlipimpim, mais parecem outros pós ilegais produzidos para também nos trazer a sensação de prazer!
Um prazer que causa dependência!
Posso parecer antiquado, mas acho que a alimentação saudável está longe das prateleiras, das belas embalagens e dos rótulos de design.
Está, sim, mais perto da horta, das roças e dos pequenos produtores!
Seja ela vegana, vegetariana ou tradicional!
Como prega o “Quilômetro Zero”, quanto mais próximo o alimento estiver da cozinha que vai prepará-lo, melhor!
E quanto mais nativo e regional for o alimento, melhor!
E o quão simples é se alimentar regionalmente e com produtos que estão próximos.
Do mar sai o pescado, que, limpo na praia, vai para a panela de fundo grosso com cebolas, tomates, cheiro verde e... banana verde!
O peixe azul marinho é um prato típico caiçara e, arrisco dizer, a única comida azul que já experimentei... naturalmente azul, e com sabor de tradição.
Já na floresta, a beira dos rios, o pirarucu recém-pescado é temperado com limão e sal (uma heresia para a nova gastronomia de butique), empanado com farinha de milho, frito e servido com um creme de açaí temperado só com sal e com um refogado de jambu. Tudo ali está à mão e ao lado do fogão - ou do braseiro, usado também para moquear tantas caças e peixes.
No terreiro ao lado da casa do caipira, a galinha é abatida, guardado o sangue com gotas de vinagre, depenada, limpa e, em pedaços, é temperada com tudo que tiver de aromático na horta.
Na panela de ferro, essa galinha ganha cor e sabor fritando na banha e finalizando com o sangue, para dar cor e personalidade à receita!
A galinha a cabidela é uma herança dos portugueses que, na região do Minho, é cozida com arroz e batizada de “arroz de pica no chão”... não me atrevo a perguntar o porquê do nome!
Nas roças por todo o interior, o milho colhido a poucos passos da cozinha é ralado, engrossado e temperado, com sal ou açúcar, depois embrulhado na palha do próprio milho, e cozido sob o peso dos seus sabugos... a pamonha é um alimento ancestral que até hoje é reinventado sempre com o mesmo sabor de ... milho!
E por aí vão todas as receitas que realmente me encantam na cozinha!
Simples como o ato de comer!
Com terroir dos quintais, mares, rios, manguezais que se espalham pelo Brasil.
E que harmonizam com rostos corados e gente feliz!
Na gastronomia, o futuro está no passado, e não podemos permitir que tudo que herdamos de conhecimento seja perdido na arrogância de chefs que acreditam que a cozinha vive de tendências, e não de origem e tradição.
Salve a cozinha raiz, salve a cozinha simples!
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Sobre o autor
André Vasconcelos
Cozinheiro raiz e autodidata, hoje no comando de sua Cozinha Singular Eventos e d'O Vilarejo Hospedaria e Gastronomia, onde insumos e técnicas são a base de cardápios originais e exclusivos... e aprendiz de escritor também!
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