A cigarra, a formiga e a arte de confitar
Tudo começou na Grécia por volta do século VII a.C. quando o escritor Esopo, a quem se atribui a paternidade das fábulas, criou a estória da cigarra ‘bon vivant’ e da trabalhadora formiga, baseada em fatos reais, acho eu! Jean La Fontaine a reescreveu e a tornou popular nos anos 1670 em coletânea que lhe rendeu um lugar na história e na Academia Francesa de Literatura.
Conta a fábula que enquanto a formiga trabalhava enlouquecidamente para guardar alimentos para o inverno, a cigarra cantarolava e zombava da formiga se esbaldando na fartura da primavera, no calor do verão, e nos sabores e cores inebriantes do outono. Alimentos frescos, fartos e prazerosos. Mas uma bela manhã o inverno chegou levando com ele toda a doçura das frutas, o frescor dos legumes, e o perfume das ervas e das folhas tenras nos campos.
A cigarra, sem entender sobre a dança das estações e a arte da gastronomia, saiu em busca de soluções para seu cardápio de inverno. Sem teto, sem comida e sem apoio da Lei Rouanet ou de qualquer “cupincha” no Ministério da Cultura da Floresta, bateu à porta do formigueiro em vão. Lá o cenário era outro: as despensas estavam repletas de sabores –compotas de frutas, grãos diversos, ervas desidratadas, carnes maturadas ou salgadas, conservas de legumes grelhados, de cebolas, de pimentas e de tudo que abundava nas estações mais quentes – e, na parte mais nobre da cozinha, ele, o confit!
Mas, mesmo com a criatividade quase alucinógena deste cozinheiro, surge uma dúvida: de que as formigas fariam confit? Certamente, se dominassem a técnica, confitariam de tudo... e mais um pouco! Confit, que alguns apostam ser originário do interior da França, é uma forma de cocção lenta, onde a carne é cozida na própria gordura em fogo muito baixo e depois conservada submersa nessa gordura rica de sabores, nos tempos em que não havia geladeira. É uma técnica muito antiga e semelhante a vários processos de conservação que permeiam nossa história desde a pré-história.
Manter os sabores e nutrientes necessários dos tempos de alimento farto não é um desafio só das formigas, foi uma questão de sobrevivência para a raça humana, a verdadeira evolução que nos tirou das cavernas e nos colocou em mesas ricas de sabores em frente a lareiras de salões elegantes. As frutas sendo cozidas imersas em calda de açúcar, em um canto morno do fogão a lenha, nas cozinhas caipiras, é um confit do campo.
Os bascos, navegadores do século IX, enchiam os porões de seus navios com mantas do bacalhau cobertos de azeite: um confit feito em barris que garantia um bom alimento em tempos de poucas opções. Legumes e frutas colocados em potes com solução de vinagres, sal, água e condimentos, vedados e imersos em água fervente também são confit. Enfim, confit é uma técnica de cozimento que não pertence a uma culinária especifica, faz parte da nossa evolução, aliás, como a maioria das técnicas culinárias, o confit não é alta gastronomia, é cultura de sobrevivência. E assim passa o ano: as formigas confitando, as cigarras cantarolando e os sabores típicos de cada uma das estações nos encantando ... c´est la vie!