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Solidão e Diálogos Possíveis, por Denise Evangelista
A sensação de solidão é um fator decisivo para desencadear desequilíbrios psíquicos

Desde o ventre materno até os encontros da vida adulta, somos formados pelas trocas que fazemos com o mundo. Mas o que acontece quando essas trocas deixam de fazer sentido? (Foto: Canva)

Publicado em 25/05/2025

Desde a nossa concepção, estabelecemos trocas. Antes da formação do nosso coração, recebemos, de forma passiva, os nutrientes necessários para o desenvolvimento do nosso organismo.  A partir do momento em que o coração está formado, participamos da distribuição desses nutrientes, contribuindo para o nosso próprio desenvolvimento. Precisamos, ao nascer, de cuidados para que possamos sobreviver. Desde cedo e gradualmente estabelecemos vínculos com outros seres humanos. É  nesse processo de socialização que nos constituímos, a partir desse “diálogo” que se estabelece primeiro, na unidade do ventre materno e depois, com as nossas comunidades e com o mundo. 

Somos constituídos por encontros: entre nossos pais, avós, bisavós. Em nós, há essa mistura, sem a qual não existiríamos. Por causa dela nos tornamos quem somos. Então somos, nesse sentido,  fruto plural. 

Estamos inevitavelmente nos relacionando com outros seres humanos, outras vozes, outras realidades, parte delas, nos chegam através dos meios de comunicação. Às vezes nos sentimos sobrecarregados com tantas notícias, sem tempo para absorver, aprofundar, refletir e elaborar sobre elas. Não conseguimos assimilar tanta informação à disposição na palma da nossa mão.  E mesmo assim, rodeados de pessoas, outras realidades distantes que se avizinham, podemos nos sentir sozinhos. Uma hipótese é que,  para que possamos nos sentir conectados às pessoas e ao mundo, para que nos sintamos parte de um grupo ou de uma comunidade, precisamos nos sentir vistos, e mais do que vistos, compreendidos e valorizados. 

Refletir é função do diálogo — eu me vejo, ou, eu consigo me ver, através do seu olhar e das trocas que estabelecemos. O que acontece é que não é qualquer diálogo que cumpre a função de nos vermos refletidos. Não é qualquer troca que possibilita que possamos compreender quem somos e o que se passa conosco. No processo de crescimento é o olhar dos mais próximos que vai gerar as nossas primeiras respostas,  que resultarão na formação dos nossos padrões de comportamento, na noção de quem somos e nas escolhas que vamos fazer no futuro.

Imagine um lugar suficientemente iluminado, onde há um espelho, um espelho no qual você se vê claramente.  Ali você pode enxergar suas formas, seus contornos, a cor da sua pele, de seus olhos. Agora pense num espelho manchado, cheio de arranhões, que como raios impedem que você se veja.  Ou num espelho como aqueles que existem nos parques de diversões e que alteram a sua imagem.  Você se vê distorcido. Não é bem você o que você vê. De repente você é um ser comprido, baixo, largo. Seus olhos não estão mais alinhados e sua boca é alguma coisa  completamente estranha. O que você vê não corresponde ao que você sabe de você. Na vida real é o que acontece quando nos sentimos sozinhos. Não conseguimos, a partir das relações que temos, estabelecer trocas que não só façam sentido para nós, como não nos ajudam a dar sentido para o que em nós, ainda não tem sentido suficiente. Esse sentimento pode nos levar ao isolamento e à desesperança. Pode nos causar tristeza, falta de energia e de motivação. Mesmo pessoas que apreciam o silêncio, mesmo aqueles que têm hobbies, afazeres, autonomia e agendas lotadas, precisam continuar estabelecendo trocas reais, precisam de referências para que possam se colocar em fluxo. Sem essas trocas, a vida fica parecendo um laguinho de água parada, mas no qual, não nos reconhecemos.

Não vivemos sozinhos, outras pessoas participam a todo momento, direta ou indiretamente da nossa constituição e da nossa transformação. Mas o sentimento de solidão, em graus e períodos diversos da nossa vida,  pode se instalar, causando alguns desequilíbrios. Há situações em que precisamos de apoio, presença e ajuda para enfrentarmos a dor pela qual passamos — dores que nos debilitam ou com as quais, por inúmeros fatores,  não temos condições de lidar sozinhos. Dessa ajuda pode depender a nossa sanidade mental. 

Penso que perceber que outras pessoas compartilham dos mesmos sentimentos pode diminuir o sentimento de solidão e a sensação de isolamento. Ver que, apesar da nossa diversidade, compartilhamos sentimentos com outras pessoas, por vezes com pessoas que não dividem o nosso espaço e mesmo o nosso tempo,  mas que experimentam ou experimentaram experiências e sensações semelhantes, pode nos ajudar a habitarmos nosso próprio corpo de maneira mais confortável. Em estádios cheios, por exemplo, em grandes shows, em peças de teatro, nas salas de cinema, ali podemos dividir importâncias, sentimentos, emoções e significações com muitas outras pessoas que nos fazem sentir parte de uma comunidade, mesmo que não formal. Quando ouvimos músicas e elas nos falam do que sentimos, e a interpretação nos remete às profundezas do que experimentamos, mas ainda não tínhamos traduzido, isso nos traz à tona à nós mesmos. Quando lemos um livro e acompanhamos a trajetória de um personagem, compartilhamos com ele medos, esperanças, forças e fraquezas; percebemos que, embora estejamos sós, compartilhamos dos mesmos sentimentos e então nos vemos contornados por seres, ideias e principalmente por emoções; quando lemos algum poema e ali, naqueles poucos versos, um mundo de sentimentos e emoções dão significado às nossas experiências.  Assim, nos sentimos acompanhados nas nossas potências e nas nossas fragilidades. Também quando estabelecemos alguns diálogos, onde há verdadeira escuta, atenção e abertura é como se fôssemos nos vendo com mais clareza. Nossa imagem vai ganhando forma e sentido diante de nossos próprios olhos, pelo olhar e pela escuta do outro. Esses são momentos de encontro que nos tiram da dolorosa sensação de isolamento e desse lugar que dificulta a nossa própria compreensão, a compreensão do que se passa dentro de nós. Abraços, afetos, carinhos cumprem também essa função, nos dão contorno, nos lembram como somos queridos e amados. 

Como aquele coraçãozinho que nos acompanha desde o início da nossa própria formação, também nós podemos participar ativamente, com  algum esforço, da busca por encontros e sentidos. E sempre que parecer muito difícil, lembrar que é humano precisar de ajuda; lembrar que somos feitos e refeitos através dessas trocas que estabelecemos ao longo do percurso. E pode acontecer que  precisemos, em alguns momentos,  de ajuda profissional e podemos buscar alguém com quem sintamos essa escuta aberta, interesse genuíno e que nos ajude a atravessar as dificuldades, sofrimentos e desafios, pelos quais todos nós passamos durante a vida. Alguém que, talvez,  nos auxilie a nos revelarmos de uma forma que antes nos parecia inimaginável. 

 

 

 

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Sobre o autor

Denise Evangelista Vieira

Psicóloga formada pela UFSC e em Artes Cênicas pela Udesc. Escreve sobre o universo humano. Quem somos e em quem podemos nos tornar? CRP 12/05019.


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