O legado poético de Carlos Damião
A imprensa catarinense perdeu um dos seus expoentes. A morte no último dia 17 do jornalista e poeta Carlos Damião Werner Martins, o Damião, entristeceu familiares, colegas de profissão, leitores e amigos. Ele foi vítima de um infarto fulminante, sozinho, em seu apartamento no Centro de Florianópolis. Há quatro anos havia sofrido um AVC. Enfrentava problemas com a visão que o dificultava a trabalhar, pois não conseguia ler e escrever com a habilidade de outrora. A Missa de Sétimo Dia será celebrada nesta quarta-feira, 23, na Catedral Metropolitana de Florianópolis em dois horários, às 12h e às 18h. “Ele viveu e amou intensamente, teve muitos amores, namoros, muitas paixões”, descreve a família numa rede social.
Damião fez história nas redações. “Convivi com ele desde os tempos de O Estado. Foi um jornalista questionador, um excelente repórter, com um texto perfeito, já que tinha grande bagagem cultural e um conhecimento profundo da cidade. Acima de tudo foi um colega amável, um sujeito educadíssimo e um chefe compreensivo”, afirma a presidente da ACI (Associação Catarinense de Imprensa), Déborah Almada. “O Damião era daqueles jornalistas formados pela velha escola, com uma visão idealista da profissão. Um repórter nato. E um poeta sensível. Vai fazer muita falta”.
O “poeta sensível” apontado por Déborah era, talvez, sua face menos conhecida do grande público. O sentimento poético do jornalista alimentou livros como “Força de Expressão” (1984), “A Palavra Imediata” (1987), “Dons” (1994) e “Alquimia da Paixão” (1995). “Que teus poemas sejam cânticos no caminho espiritual”, disse o jornalista Marcelo Passamai ao se despedir do amigo.
A obra poética de Damião pode ser encontrada hoje em bibliotecas particulares e públicas, e adquirida em sites como o Estante Virtual. A jornalista Néri Pedroso guarda os livros que tem, autografados pelo autor, como tesouros. O Imagem da Ilha teve acesso aos exemplares e deles extraiu seis poemas, os dois primeiros de “Alquimia da Paixão” e os demais, de “A Palavra Imediata”.
NÃO SE MUDAM OS JARDINS
Para Ana Bessa e Mário Pereira
Não se detém a palavra
Nem quando lhe falta a expressa
Tradução
Um tempo de paz.
Não se mudam os jardins
Nem quando faltam folhas
Para tingir o espanto
SALTO DA SAGRAÇÃO
Conduzo a palavra
Como a asa que me falta
À direita
E como os pés que tocam
Tuas nuvens de algodão
Conduzo a palavra
Viajante
Pela manhã de espera em que te
Ocultas,
Como um gato sobre a pedra inerte
Pronto para o salto da sagração
PALAVRA MÍNIMA
Para Cleber Teixeira
A palavra persiste
Sagaz
Persegue emblemas
Arrisca abismos
Assombra os
Mares.
Palavra
Mínima palavra minha:
Fragmentada
Temporal
Plural e feminina
Quintal e fruto
Matéria e sombra
Dialética do
Sonho.
PARAÍSO
O paraíso é aqui mesmo,
Ouvindo
Rhapsody in Blue
A mão tocando
O impossível,
Cortando os ruídos
Graves/agudos
TRAPEZISTA
Colho as palavras
Como quem,
Do trapézio,
Colhe o ar
TRATADO
Não tenho a intenção
De cruzar um oceano
E declarar-te
Guerra
(tampouco violentar tua
Essência)
Quero tão-somente
Beber do teu mar
SOLIDÃO CONTÍNUA
O gume da faca
Virado para cima,
Um copo vazio sobre
A mesa,
A janela
Aberta
A TV ligada
A solidão é
Irresistível
Texto escrito por Urbano Salles