Boicotando o boicote
A ética dos clientes na era da tecnologia
O mundo é um cenário e nós, atores, sempre interpretando um papel que poucas vezes parece com o que realmente somos. Triste mundo esse pasteurizado pela internet, telefones e redes sociais. Em outros tempos, ao menos dentro dos lares, os cidadãos podiam ser o que eles realmente eram, sem mentiras, sem fantasias, sem personagens... ser o que todos deviam realmente ser, simplesmente ser. As câmeras e o medo nos tornaram prisioneiros dos personagens que criamos.
Quando em um restaurante, as regras sociais que outrora definiam o comportamento pelo nível de sofisticação do salão, pela elegância dos atendentes e pela quantidade de creme de leite usado na receita, desapareceram. Assim como desapareceram, isso, felizmente, ingredientes mal importados para dar sofisticação a pratos que seriam muito mais saborosos se valorizassem produtos locais e frescos, como está acontecendo atualmente.
Tempos de glamour nos trajes, nos talheres de prata, nos cabelos com gomalina, taças de champanhe, rasas e de puro cristal, sapatos de cromo alemão, toalhas e guardanapos de linho engomados. Tempos de glamour na maneira de se apresentar e de se portar em um restaurante! Respeito ao espaço, respeito ao trabalho e a si mesmo, procurando aproveitar cada momento e cada sabor durante horas em mesas consagradas e quase sagradas: ir a um restaurante era um evento!
Hoje, a internet com seus terminais nervosos ligados wireless nos cérebros de viciados em smartphones, transformou o comportamento dos comensais contemporâneos, que antes eram clientes, em jornalistas ou fotógrafos ou nutricionistas ou gastrônomos ou até analistas financeiros. Para o desespero dos cozinheiros dedicados! Desespero por que sabem o quanto é crucial o prato chegar à mesa com temperatura, textura e aroma meticulosamente estudados para que cada garfada provoque uma sensação gustativa única, registrada para sempre na memória.
Clientes, uma boa parte deles, deixaram de ser clientes para, antes de tudo, criticar. E, como todo critico diante do prato que chega à mesa, o cliente/parfumeur tece um comentário sobre o perfume, porém, esse perfume que tem como função aguçar seu paladar, é desprezado enquanto o cliente/fotógrafo escolhe o melhor ângulo para registrar aquilo que para ele é uma fina escultura. Depois disso, o critico/cliente vai à sua página da rede social preferida postar a foto, não sem postar um comentário sobre a montagem e apresentação do prato.
Passado esses muitos minutos, chegou a vez do comensal/chef, especializado nas mais variadas cozinhas, desde a francesa até a tibetana, apreciar o prato que ele escolheu cuidadosamente, apesar de, no momento, não lembrar ao certo o que é e, por um segundo, desce do seu trono no Olimpo dos experts e pede ao garçom o cardápio para recordar o pedido feito. Então, vai à primeira garfada, que invariavelmente estará fria. Volta à sua pagina na rede social e posta prontamente: “como um restaurante desse nível não consegue servir um prato na temperatura certa?”.
Deste momento em diante, para esse cliente/especialista, a noite está perdida. Chega a hora da conta, onde surge, em meio às taças de vinho que correm em suas veias, o analista financeiro. Vira e revira aquela conta como se fosse um relatório de fechamento anual de uma multinacional, e, quase a contragosto, paga, não sem postar na rede social o absurdo que foi a conta de um prato que chegou frio à mesa.
Cidadãos/comensais como esses estão cada dia mais frequentes em nossos restaurantes, em busca de novos sabores, nem sempre pelo prazer que trás um novo sabor, mas sempre para comentar com os amigos, reais e virtuais. Cidadãos/clientes como esses criam páginas em redes sociais como uma criada em São Paulo: BoicotaSP, que no texto original de apresentação se define como um site de reclamações de lugares que “cobram demais e entregam de menos”.
Se esse site fosse dirigido ao poder público seria justa a definição, afinal, cobram impostos demais e não nos entregam absolutamente nada. Mas como sugerir boicote a empresários que carregam esse país nas costas?
Em um dos posts do BoicotaSP, um cidadão abaixo de qualquer crítica, critica um milk-shake de sorvete Häagen-Dazs, uísque Jack Daniel's e cerveja Guinness servido no Meats: custa o absurdo de R$ 40! Em uma conta simplista, vamos ao supermercado e pagamos um potinho do malfadado - e maravilhoso - sorvete R$ 12 + ½ dose do bendito uísque R$ 10 + 1 lata de cerveja Guinness R$ 17 = R$ 39... o mal-informado reclamante pode fazer em casa e economizar R$1, quem sabe para comprar o palito de dentes!
Hoje, restaurantes bem localizados, ambientes finamente decorados, equipe treinada, estacionamento, adega, cristais, louças, talheres, guardanapos, uniformes, banheiro, cozinha, depósito, impostos, salários, contas, fornecedores e tudo que diferencia um restaurante de outro, restaurante custa muito e quase inviabiliza a maioria dos novos projetos. Pode parecer absurdo uma garrafa de vinho Chateaux Petrus custar R$ 10 mil (ou muito mais conforme a safra) em uma boa carta de vinhos de um restaurante estrelado, mas paga quem conhece, quem quer e quem julga este um preço justo por essa eno-raridade!
E o ganho percentual do restaurante nesse vinho é infinitamente menor do que o da coca-cola vendida a R$ 3 na barraquinha de cachorro-quente na saída da balada. Eu, particularmente, adoraria comemorar meu aniversário de casamento hospedado na suíte real do Four Seasons George V na incomparável Paris, mas acho que R$ 40 mil por dia me farão falta na hora de trocar minhas frigideiras. Criemos então o BoicotaPetrus, afinal cada ml da bebida custa mais de R$ 13, mais caro até que tinta de impressora a laser, que, friamente analisando, é um dos líquidos mais caros do mundo.
Vale também um BoicotaGeorgeV com seus R$ 1,5 mil a hora/hospedagem, mais que o dobro do preço da hora/médico-especialista que custa até R$ 600 por 30 minutos de consulta. Mas, o que é mais preocupante nessa era da tecnologia e da informação, é que também é a era da globalização: globalização da falta de educação, globalização do desrespeito ao trabalho, globalização da informação fútil, globalização do falso poder, globalização da busca dos quinze minutos de fama preconizado por Andy Warhol... aliás, globalização do “quem é Andy Warhol?”
Globalização da falta de cultura: tanto geral, quanto gastronômica. E assim caminha a humanidade... para onde, ninguém sabe...
Sobre o autor
André Vasconcelos
Cozinheiro raiz e autodidata, hoje no comando de sua Cozinha Singular Eventos e d'O Vilarejo Hospedaria e Gastronomia, onde insumos e técnicas são a base de cardápios originais e exclusivos... e aprendiz de escritor também!
Ver outros artigos escritos?