“Otelo” e “Clarissa”: as figuras de linguagem ilustram os perfis dos personagens, por Luzia Almeida
É impossível pensar em Iago, personagem da obra “Otelo” de Shakespeare, sem pensar pelo viés da metáfora, porque dizer que ele é perverso é dizer nada, a palavra não suporta o caráter dele. Dizer que ele é pra lá de perverso ainda fica aquém. Então, o jeito é dizer que ele é serpente, lama, abismo. A metáfora da serpente-lama-abismo ilustra o personagem Iago com sua estratégia para acabar com o casamento de Otelo e Desdêmona: “Assim, de um tolo faço minha bolsa. Profanaria eu meus conhecimentos se gastasse meu tempo com um idiota deste cunho, a não ser para aproveitar a oportunidade ou por mera distração”. Convence o amigo e a metáfora se configura por conta do veneno. Todavia, não se pode ler “Otelo” sem antes ter lido “Clarissa” de Érico Veríssimo.
As figuras de linguagem são usadas para dar peso às palavras, são usadas para dar significação reforçada até porque as palavras tem prazo de validade e personagens como Iago não são leves: após acender o ciúme de Otelo que enlouquecido mata a esposa, Iago é finalmente desmascarado: “Ó, cão de Esparta, bem mais cruel que a fome, a angústia e o próprio oceano!”. Cão, na fala de Ludovico, tem significados que apenas podemos deduzir já que a obra foi escrita por volta do ano 1603. Significados que foram diluídos no decorrer dos séculos. Significados que não se sustentam hoje já que amamos cães e gatos. Mas a metáfora da serpente-lama-abismo assegura-nos a vileza do personagem. E Clarissa? Ah!..., Clarissa não tem nada a ver com Iago: maniqueísmo puro. A personagem Clarissa é de uma pureza de caráter que a metáfora do lírio não pode alcançar. O açúcar e o néctar das flores supõem apenas uma doçura que marca um traço de luz que seria a bondade do sorriso dela. E as metáforas para ilustrar a personagem do Érico são todas lagoas, jardins — ela não é flor, é jardim, não é estrela, é constelação...
O escritor, para apresentar sua personagem, pintou um quadro: “Só agora Amaro acredita que a primavera chegou: de sua janela vê Clarissa a brincar sob os pessegueiros floridos. [...] E se tentasse exprimir em música o momento milagroso? Quem sabe? Clarissa ainda corre sob as árvores. Grita, sacode a cabeleira negra, agita os braços, para, olha, ri, torna a correr, perseguindo agora uma borboleta amarela”. Ela é tão doce que o mel passa a ser comum. E o som da sua voz é orquestra infinita, água... fonte!
A hipérbole não pode ser usada quando se localiza Iago discursando nos ouvidos de Rodrigo e de Cássio; e não se pode usar eufemismo quando localizamos a menina Clarissa se desviando das pessoas da pensão. Ela é tão avessa ao mal que é duro chegar à última página do livro.
A última página do livro encerra a ficção. Então guardamos William Shakespeare e Érico Veríssimos na estante (não perca essa metonímia): descartamos Iago e sonhamos com a pureza de Clarissa. E, se por acaso alguém perguntar o que você quer ser quando crescer... então retorne à estante, retire o Érico, abrace-o, leia a música que ele escreveu e que não está tão longe assim...
Texto por Luzia Almeida
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Sobre o autor
Luzia Almeida
Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação
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