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“O caso da vara” de Machado de Assis e o verbo rir como fronteira entre senzala e casa grande, por Luzia Almeida
Reflexões sobre hierarquia e poder

'O caso da vara' de Machado de Assis revela as nuances da sociedade pós-abolição e as complexidades das relações de poder. (Foto: Divulgação)

Publicado em 10/05/2024

  O conto “O caso da vara” de Machado de Assis, publicado em 1891 na Gazeta de Notícias, é um tipo de raio X do que somos, é um texto que nos humilha e nos constrange na apresentação de um personagem (ficcional) que passa por cima da dor alheia por conta do seu próprio bem-estar. Este conto mostra o escritor saindo da periferia da humanidade e mergulhando naquilo que é próprio do ser humano; mostra também o retrato de uma época e as condições de hierarquia no Brasil pós abolição no flagrante abuso da negação do riso de uma escrava.

          O conto revela o personagem “Damião” fugindo do seminário porque não queria ser padre (houve um tempo em que os pais obrigavam os filhos a seguir a carreira eclesiástica). Ele foi buscar abrigo na casa de “sinhá Rita”, uma conhecida sua, porque precisava de financiamento para sua liberdade; não tinha crédito na praça e ela era uma possível agiota: a metáfora da agiotagem escancara o poder nas relações interpessoais e é um flagrante na percepção de que, na casa da “sinhá Rita”, mesmo diante das piadas de “Damião”, rir é um verbo de privilegiados. Enquanto ele espera a resposta de sua liberdade, a pirâmide social permanece inalterada e quem sente é Lucrécia que arriscou divertir-se com as piadas de Damião. Mas na sua ingenuidade aprendeu que rir é um verbo de casa grande: 

          “Uma destas (anedotas), estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de “sinhá Rita”, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa a ameaçou-a:

           — Lucrécia, olha a vara!”. 

          A abolição tinha acabado de raiar, mas os raios desse sol ainda não tinham penetrado na sala de “sinhá Rita” e a pequena “Lucrécia” nunca tinha ouvido falar em princesa Isabel. A abolição dava os seus primeiros risos infantis e para uma menina era impossível não rir das piadas de “Damião” e era ridícula essa obrigação de concluir uma tarefa como se disso dependesse a paz mundial. Para “sinhá Rita” a obrigação da conclusão do trabalho das escravas era um comprovante de seu poder enquanto senhora e rir era um direito dos donos da casa e esse direito ela não negociava. Assim, percebe-se que casa grande e senzala não se misturavam numa sala de Brasil pós abolição quando a república ainda era incipiente e permitia a visão dessas torturas históricas.

          “Damião” não ousava enfrentar sua protetora pois dela vinha sua liberdade entrelaçada com seu padrinho “João Carneiro”. Que embrulhada! Ele entregou a vara para a senhora e Lucrécia recebeu um castigo arbitrário e injusto por conta de um momento de prazer e satisfação: “Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou a vara e entregou-a à sinhá Rita”. 

          O pranto e o sofrimento de uma escrava não são descritos no conto e dói mais a inferência que se faz sobre essa cena: uma pobre menina escrava de onze anos é castigada porque se divertiu com as piadas de um oportunista e não conclui suas tarefas. Esta cena mostra as relações interpessoais e de trabalho de um país que acabara de acordar para a república e que ainda não tinha levantado da cama monárquica... Levantar-se é verbo necessário uma vez que há muitas Lucrécias — nas senzalas — embora estejam nas salas das senhoras com o verbo sorrir apenas num projeto.

 

Texto por Luzia Almeida

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Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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