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“Ismália” e as dores do mundo, por Luzia Almeida
A beleza da lua e seu reflexo no mar, o que seria? uma lua dobrada ou ...

Para tantas “Ismálias” do Brasil, o sonho representa uma linha tênue entre a espada para lutar e a torre para se entregar, ainda que haja lua. Foto: Pixabay ***Clique na foto para ampliar

Publicado em 15/03/2024

       Século XIX. Alphonsus de Guimaraens escreveu “Ismália” e apresentou os traumas de sua época numa narrativa poética sufocada pela dor da perda de seu amor aos 18 anos. Dor que se traduziu em loucura: “Quando Ismália enlouqueceu, / Pôs-se na torre a sonhar... / Viu uma lua no céu, / Viu outra lua no mar”. O que seria uma lua dobrada? Seria um reflexo de uma dor em dobro? Talvez! Um sentimento em estado hiperbólico.

       O que pode doer mais que a perda de um amor? É o peso da ausência, da lacuna, do vazio... da sombra que fica quando a delimitação vai embora. A delimitação dos olhos, das mãos; mesmo que o sorriso fique guardado para sempre na memória afetiva. Ausência, lacuna, vazio e sombra são sinônimos de solidão.

      “No sonho em que se perdeu, / Banhou-se toda em luar... / Queria subir ao céu, / Queria descer ao mar...”. Na amplidão de uma terra seca, da solidão dobrada, o eu lírico se perde no sonho, última fronteira da lucidez: O eu lírico disfarçado de “Ismália” abraça a antítese “subir” e “descer” na rigidez de um banho noturno caracterizado pelo vazio de um luar solene. Na poesia simbolista aqui representada por Alphonsus de Guimaraens temos um tipo de pessimismo decadente representado pela extravagância do comportamento de “Ismália”, mesmo com o álibi da loucura, os versos cantam sons pessimistas que anunciam a degradação humana. Um estrondo salvo pela musicalidade: “E no desvario seu / Na torre pôs-se a cantar... / Estava perto do céu, / Estava longe do mar...”. Outros poetas também manifestaram suas dores e fazem uma orquestra com as palavras capazes de convencer-nos. É o caso de Elias José e seu poema “As dores do mundo”: “Sinto bem fundo / todas as dores do mundo. / Só que meu poema / não conseguiu tocar / em feridas maiores. / Abro os jornais / e leio e choro e me arrepio / com a fome / com a guerra / com a aids / com a destruição / do verde e da vida”. E esse poema foi escrito antes da pandemia do Coronavírus. Hoje vivemos outras dores: a pandemia “passou” e deixou dores associadas. O poeta Elias José ainda questiona a força da poesia: “Tento escrever, / mas sai um poema impotente”. Todo poema é um dínamo! O poema é marcado por anúncios e fatos: é ação pura em forma de palavras.

       Mas, retornemos à moça de Alphonsus: “Quando Ismália enlouqueceu, / Pôs-se na torre a sonhar”. Um sonho é melhor que o vazio total. É a manifestação, talvez, de um resto de sensatez, como se ela dissesse: “Vou sonhar, talvez amanhã, ao acordar, descubra que a dor passou”. Para tantas “Ismálias” do Brasil, o sonho representa uma linha tênue entre a espada para lutar e a torre para se entregar, ainda que haja lua. “Ismálias” existem subindo em torres: “Por favor, não façam isso! Voltem!”. Argumentos existem para as mais diversas situações. É preciso anunciá-los. É preciso que haja vida e que o jornal escrito para amanhã seja lido. E o aguar a planta seja mais que um hábito, seja um ritual. Os jornais e as plantas precisam de olhos e de mãos; não de asas.

      “As asas que Deus lhe deu / Ruflaram de par em par... / Sua alma subiu ao céu, / Seu corpo desceu ao mar...”. O eufemismo do “subiu ao céu” não suplanta a tragédia da queda. Vivemos num tempo de dores, precisamos de vitaminas emocionais, sais minerais para o coração e proteínas para os nossos dias. Precisamos impedir que “Ismálias” subam à torre.

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Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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