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Além das garras noturnas: Reflexões sobre a crueldade e a escravidão, por Luzia Almeida
“Negrinha” de Monteiro Lobato e o Clube dos Malvados

Na penumbra da história, os olhos assustados da Negrinha ecoam o silêncio de uma tragédia não contada. (Foto: Divulgação).

Publicado em 26/04/2024

  “Têm garras, têm enormes perigos / De exércitos disfarçados / Milhares de gatos escondidos por detrás da noite incerta”. A essa citação de Mário de Andrade ocorreu-me um pensamento sobre a personagem “Negrinha” do escritor paulista Monteiro Lobato. Essa conexão tem como base o perigo ilustrado pela personagem “dona Inácia” que tem garras: ela é a dona da fazenda (casa grande) e ela tem arroubos de perversidade num cenário, que lhe serve como álibi, social e religioso. Esses arroubos perversos, invariavelmente, são cometidos contra “Negrinha” (senzala). Casa grande e senzala são feridas que nunca foram cicatrizadas neste Brasil que abriga um clube de malvados. Este clube deve ter surgido com a comercialização de seres humanos.

          A pequena “Negrinha” representava escravidão imposta e vulnerabilidade num grau insuportável. Representava também falta de amparo que até poderia fazer chorar uma pedra: “Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados”. Esses olhos assustados numa criança de sete anos, hoje, já poderiam ser indícios de abuso, naquela época ninguém ligava e, por isso, não se denunciava: “Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças”. Assim, vivia a personagem e ela nem sabia direito o motivo de viver escondida, mas sobrevivia.

          Quando iniciamos uma narrativa, somos levados pela cadência dos fatos que, dependendo do estilo do(a) autor(a) somos convocados à reflexão sobre determinado tema. No conto que estamos tratando, o autor começa com a descrição da pequena órfã. Não é aconselhável ler este conto sem proteção, porque a carga emocional que despenca sobre nossos corações exige uma preparação. Quando li “Negrinha” pela primeira vez, eu não estava preparada. Fui lançada a um vácuo de solidão sem chance de retorno. E hoje ainda há uma repulsa ao pensar nos personagens que revelam o abismo de um clube hediondo. Dona Inácia é a sócia majoritária por conta de seu caráter baixo e mesquinho. É a velha história do “eu faço porque posso e ninguém poderá me punir”.

          O maior padecimento físico de “Negrinha” aconteceu por conta da linguagem: ela não sabia o significado de “peste bubônica”. Metalinguagem que deflagra a tragédia... Foi terrível! As pessoas a chamavam de “peste bubônica” e ela achou que era algo normal e, na sua avaliação ingênua, achou que poderia chamar os outros também assim. Não podia chamar, porque “havia gatos escondidos na noite incerta” e os “gatos” foram contar à dona Inácia”. E o pior aconteceu: ovo quente na boca da pequena. É assustador os requintes de crueldade potencializados pela idade da vítima: sete anos. Seria possível uma punição a uma criança ou Monteiro está pensando na escravidão no Brasil de modo hiperbólico? O poema “Navio negreiro” retrata um fato ou Castro estava exagerando? Literatura associada à realidade levam-nos a pensar num clube de malvados. Infelizmente, empatia, amor e solidariedade não servem como critérios para abertura de um grêmio.

          A única alegria de “Negrinha” foi uma boneca trazida pelas sobrinhas da dona Inácia. Mas essa alegria não tinha histórico e a retirada dela lhe deixou sem chão: “Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono.

Texto por Luzia Almeida

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Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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