Lute como um artista, lute como Meyer
Sandra Meyer fala sobre a trajetória de seu pai, o artista plástico Meyer Filho
Dos caminhos do outro século, a arte moderna despontava em terra distante, em ponto do mapa ilhado. Uma vida em 100 anos, do nascimento até o último sopro de ar a oxigenar o corpo. Um bancário na lida, desenhava para viver, para arrancar de dentro o que fabulava sem parar, cinquenta anos de materialidades apropriadas.
Já naquele tempo, no século passado, todos já sabiam que Meyer Filho não era desse lugar, desse linear corrente. Era de Marte. O artista mesmo narrou suas aventuras no planeta vermelho, encantou os ouvintes com as belezas que avistava, a paz que sentia nos campos floridos. Os galos cósmicos, a loucura toda, hibridismos chocantes. No centenário do artista catarinense Meyer Filho, sua produção vem emoldurada pelo contexto a tiracolo.
O surgimento da arte moderna em Florianópolis, em Santa Catarina, no Brasil, no mundo. As questões latentes, latejavam. “Arquivos Implacáveis Meyer Filho” é uma exposição inédita em cartaz no Museu de Arte de Santa Catarina (MASC), até janeiro de 2023. Muitas atividades movimentam as obras, os fatos, a história que merece ser lida, contada, atravessada. Guardiã do acervo, a sua filha Sandra Meyer, presidente do Instituto Meyer Filho fala sobre como é olhar para tudo que passou e está exposto para todos.
Sandra, depois de tanta luta para viabilizar esse momento, como você se sente agora?
A luta foi longa, tem sido ainda. E, por vezes, exaustiva. A luta por editais, leis de incentivos, luta por recursos. Agora, finalmente, colocamos esse projeto para a comunidade que era nosso anseio. Fazer Meyer Filho chegar perto das pessoas e as pessoas perto dele para que conheçam toda a trajetória, conheçam a complexidade e potência do trabalho dele. E a luta dele para ser um artista, para implementar um circuito de arte em Santa Catarina.Me sinto num misto de exaustão e contentamento, por ter, enfim conseguido, junto com uma equipe incrível realizar esse projeto.
Essa trajetória fortaleceu uma rede de artistas e amigos que abraçaram o legado de Meyer com você? Quer comentar esse legado também que Meyer uniu?
Essa rede de artistas e amigos do campo da cultura e arte, que abraçaram esse projeto, abraçaram essa ideia, entenderam a importância, relevância e urgência de mostrar quem foi esse artista e o que ele construiu em vida. E tudo que reverbera a partir da trajetória dele. Foram cinco décadas. Ele começou a atividade como artista nos anos 1940 e trabalhou até o seu falecimento em 1991. Cinco décadas de muita luta, dificuldade de ser valorizado como artista, ser compreendido. Ele começou numa cidade bastante provinciana, que é Florianópolis, e não entendia o que fazia um artista e a importância da arte na sociedade. Ele traz também toda essa problemática do lugar da arte na vida e do lugar da arte dele dentro do campo das artes visuais, da cidade, do Estado, do Brasil e mundo.Pois fazemos parte de uma grande aldeia global.São profissionais muito qualificados da equipe técnica, voluntários, o projeto é bem amplo. Envolve exposição, livro, documento, trabalho sobre o acervo, trabalho de ação educativa, um site. Essa rede pra mim é uma das coisas mais interessantes, embora meu pai fosse uma figura muito forte, que tinha a sua identidade, ao mesmo tempo ele começou criando um circuito coletivo, que foi o GAF (Grupo de Artistas Plásticos de Florianópolis), junto com outros artistas em 1958. Ele entendia a força de um coletivo e eles se reuniam muito, a cidade não entendia quem eles eram. Uma das partes mais bonitas e prazerosas é falar e agradecer essa grande equipe.
Meyer se sentiu invisibilizado pelo seu lugar natal? Ele falava sobre isso?
Ele falava muito, ele esbravejava e escrevia sobre isso. Criava charges sobre isso. Ele dialogava com as pessoas nos lugares, em casa, no barzinho, no Banco do Brasil. Sempre muito crítico ao circuito, foi difícil a cidade o entender, não só ele como artista, mas a sua geração. A geração que iniciou o movimento de Arte Moderna em Santa Catarina, que rasgou os véus do tradicionalismo. Começaram a mostrar que a arte é bem maior. Ele tinha uma angústia pelo não reconhecimento. Ele foi conhecido fora do eixo, expôs na Casa do Artista Plástico de São Paulo em 1963. A crítica foi extremamente positiva, ele vendeu muitas obras, mas quando voltou para SC. As pessoas não conseguiam vislumbrar que o que ele estava construindo era bom e tinha um reconhecimento nacional. Ele era visto como um louco manso, ele chorou, ele sentia muito isso, essa falta de reconhecimento. Foi muito difícil para ele e para a sua geração.
Como é ser filha de Meyer?
Essa pergunta tem muitas camadas. A menina, a criança, tinha um fascínio pelo artista, pelas coisas que ele fazia. Também não compreendia muitas coisas. Adolescente eu sabia de coisas que ele fazia, ouvia coisas e via muitas coisas por conta desse não reconhecimento, o jeito que se posicionava eticamente, politicamente, artisticamente era difícil de compreender às vezes. Mais tarde, quando abracei a carreira de artista, fui das artes visuais, expus ao lado dele, recebi apoio dele como artista da dança. Nesse sentido era um pai que apoiava, se importava, ele era carinhoso e muito focado no campo da arte. Às vezes a gente não entendia, ele era um artista complexo, intempestivo. Para um jovem, uma criança, às vezes era difícil. Quando eu entendi isso tudo, fiquei muito próxima dele, produzi exposições para ele. Eu fui entendendo a importância e o porquê ele tinha certas atitudes, ser filha dele tem muitas camadas.
A exposição não fala apenas de Meyer, mas conta sobre o surgimento da Arte Moderna de SC, não considerada na bibliografia nacional. Como essa questão de revisão se encontra nesse momento?
A ideia de pensar esse ano foi importante. Os 100 anos da Semana de 1922, ao mesmo tempo, tiveram muitas exposições que fizeram uma revisão da discussão da Arte Moderna. A possibilidade de pensar a arte moderna brasileira com muito mais complexidade. E pensar no Brasil. Nesse sentido e nesse momento de pensar a arte moderna não centralizada, pensar nesse Brasil tão grande e complexo. Essa exposição não é apenas sobre Meyer. É sobre ele e seu contexto.
Por que os catarinenses devem conhecer Meyer?
A Arte catarinense é fantástica, potente, singular e genuína. Meu pai dizia. Mas nós não temos a propaganda e a visibilidade dos baianos, nem dos cariocas, nem dos paulistas. Não falta talento, não falta gente, não falta qualidade, não falta esforço. O que falta mesmo são políticas públicas consistentes de continuidade. Um reconhecimento do que temos de único, produzido aqui, local e universal.
Eu comecei a visitar as empresas para viabilizar o projeto dos 100 anos do Meyer Filho, pois todo mundo adora suas cores e formas. Não foi nada fácil, algumas empresa nem respondem os e-mails. Foram poucas as que nos abraçaram e essas eu agradeço muito. Temos muitos apoiadores que estão nesse projeto que acreditaram que a cidade merece, a cidade precisa conhecer mais sobre Meyer Filho. Quem conhece ama, gosta e cuida. Quanto mais a gente aproximar as pessoas das obras, quanto mais conhecerem, entenderem quem é esse artista e o que ele construiu, mais a gente vai se fortalecer como sociedade. Porque sem arte e cultura não dá, senão será a barbárie.
Por Luciana de Moraes
Da redação
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