A nova guerra mundial sem nome, por Vinicius Lummertz

No Brasil estamos tratando os conflitos comerciais tarifários como se estivéssemos em tempos de paz. Por isso o estupor nacional. Guiamo-nos por signos de cooperação, diálogo e equilíbrio, como se o cenário internacional ainda obedecesse à moral da paz que presume boa-fé, acordos duradouros e ganhos mútuos. O mundo de Breton Woods. Mas esse não é mais o mundo em que estamos. O Brasil é o pior analista de contexto do planeta. Não entendemos o mundo como livro ou filme mas sim como novela.
Vivemos, de fato, sob a lógica da guerra, uma guerra ainda sem nome. Diferente das duas grandes guerras do século XX ou da Guerra Fria, este novo conflito global é difuso, simultaneamente armado e comercial, explícito e silencioso. Tem frentes de batalha, mas também fronteiras invisíveis. Alguns comentaristas norte-americanos já tratam Trump como um “war president “, outros como “freedom fighter.”
O conflito na Ucrânia, com seus impactos diretos na segurança energética e alimentar da Europa, é apenas uma das expressões armadas dessa nova ordem em disputa. As tarifas secundárias aplicadas à Índia, e talvez contra o Brasil, por pressão direta dos EUA estão conectadas a esse mesmo jogo de poder. A reconfiguração tarifária global, por sua vez, já impulsiona o rearmamento da OTAN e a reorganização das alianças industriais e militares. Tudo está imbricado, em desenhos, mas não tem arquitetura finalizada, e por isso ainda não tem nome. Tehran e Tel Aviv é outra matéria entre muitas.
É fundamental compreender que a moral da guerra é distinta da moral da paz, e muito mais complexa. Nela, as ações são avaliadas não pelo idealismo, mas pela eficácia estratégica. A moral da guerra autoriza medidas duras, dissimulações e rupturas que seriam impensáveis em tempos de paz. Por isso, ela é mais perigosa. Essa ficha não caiu no Brasil, nem quando a cabeça a prêmio de Nicolas Maduro já esteja em 50 milhões de dólares.
E essa lógica, como destacaram os teóricos Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, exige responsabilidade histórica das elites. Mosca afirmava que todas as sociedades são governadas por minorias organizadas, as elites, e sua legitimidade depende de sua capacidade de liderar com visão e coesão. Pareto, por sua vez, via a alternância entre elites decadentes e novas elites ascendentes como inevitável. Ambas as teses convergem para uma conclusão atualíssima: as elites que não se renovam e não respondem aos desafios de seu tempo são substituídas por colapso interno ou por força externa.
Hoje, as potências tradicionais, Estados Unidos, União Europeia, China e Rússia, estão reconfigurando suas elites e suas estratégias. Algumas investem em inteligência artificial, chips, armamento hipersônico, terras raras. Outras em narrativas e hegemonia moral. Todas reconhecem que estão em guerra, mesmo que não a nomeiem assim. Estão reorganizando sua lógica de comando.
O Brasil, ao contrário, permanece preso à retórica do passado e a disputas internas autofágicas. As elites política, econômica, empresarial, financeira, intelectual, eclesiástica, sindical e da imprensa brasileiras não dão sinais de compreender o tamanho da responsabilidade que carregam. O Brasil opera sob a moral da paz, sem perceber que o mundo já age pela moral da guerra. Essa desconexão já está nos custando caro.
A atual guerra comercial faz parte desse novo modelo de guerra mundial: econômica, tecnológica, informacional. As armas não são tanques, mas sim dissuasão militar nuclear, cadeias produtivas, algoritmos, tarifas, dados, controle de infraestrutura crítica e dependência estratégica.
Há também a guerra de palavras, sentidos e narrativas. Um campo onde a linguagem é manipulada para moldar percepções, confundir fatos e redesenhar o mapa de aliados e inimigos. O “soft power” nunca foi tão incisivo — e, paradoxalmente, tão brutal.
Nesse contexto, o Brasil precisa sair da ingenuidade pacifista. Não se trata de abandonar nossos compromissos com a paz e o multilateralismo, mas de entendê-los dentro da realidade do mundo em que estamos inseridos. O tempo da neutralidade romântica passou.
Esse novo cenário exige uma nova diplomacia: proativa, técnica, multifacetada. O Brasil, potência agroambiental, democrática e pacífica, pode e deve ser útil a todos os polos em disputa. Somos uma peça-chave nas cadeias globais de alimentos, energia, minerais estratégicos, biodiversidade e inovação. Somos elo confiável e, por isso mesmo, somos necessários.
Mas para isso, o Brasil precisa amadurecer rapidamente. O mundo não espera. Os conflitos já estão em curso, as decisões são tomadas em tempo real e os espaços de influência são ocupados por quem age, não por quem hesita.
Mosca e Pareto nos alertam: elites que não percebem o espírito do tempo são ultrapassadas por forças maiores que sua própria inércia. Só com lucidez estratégica, renovação de lideranças e visão de longo prazo poderemos transformar nossa relevância potencial em influência concreta. Caso contrário, seremos apenas um território a ser explorado e não um país soberano em um mundo em disputa.
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Sobre o autor

Vinicius Lummertz
Ex-Ministro do Turismo, ex-Secretário de Turismo e Viagens do Estado de São Paulo, ex-Secretário de Articulação Internacional de Santa Catarina
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