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Não me convide para um risoto, por André Vasconcelos
A experiência gastronômica é valorizada, com destaque para o uso adequado do caldo e do vinho na receita

André Vasconcelos defende a tradição e a qualidade na preparação do risoto em seu novo texto. (Foto: Divulgação)

Publicado em 24/10/2024

Desculpem-me os amigos que já me receberam com educação, delicadeza e elegância para um risoto. Nada contra o risoto, aliás, é um dos meus pratos preferidos. Já comi belos risotos em muitas ocasiões especiais ao lado de amigos especiais; porém, já agredi meu paladar com combinações macabras!

Sempre fui muito sincero em meus comentários: “O risoto está indescritível!” E muitos deles realmente eram indescritivelmente mal cozidos, mal combinados, mal finalizados ou uma mistura bizarra de todos esses defeitos. Enfim, não era um risoto de fato.

Risoto não é feito de restos; é impossível fazê-lo com resquícios da geladeira. Não é um prato para se render a versões desconstrutivas da nova, pós-moderna e sem sabor, cozinha espanhola. Também não é um prato coadjuvante em cardápios franceses de chefs moderninhos. Risoto é um prato italiano e sempre será!

Risoto não é um prato fácil; fácil é Miojo. E, cá entre nós, mais vale um Miojo correto do que um risoto pretensioso. Abaixo a banalização do risoto e viva a glamourização do Miojo!

O arroz, elemento fundamental para um bom risoto italiano, foi trazido para o país da bota por volta do século XV pelos espanhóis, que o conheceram com os árabes. A primeira receita publicada de um risoto data da primeira metade do século XIX e é o que é até hoje: grãos de arroz italiano (vialone nano, arbório ou carnaroli) cozido em um rico e aromático caldo, onde os grãos devem ficar ligeiramente resistentes, o aclamado “al dente”, e envoltos por uma camada cremosa e saborosa.

Não tenho nada contra servir risotos aos amigos, mas respeitem uma tradição italiana e uma receita de quase dois séculos: risoto de Nutella com nozes ou de salsicha com mostarda é uma agressão a tanta história e tradição!

Para um bom risoto, regra básica: é preciso ter bons ingredientes. O arroz tem que estar brilhante e não pode ser lavado. A qualidade do caldo é imprescindível, e, por mais que chefs mundialmente renomados indiquem, caldos não podem ser em cubinhos, potinhos, grãozinhos ou pózinho. O caldo é a alma do risoto, e quem usa desses subterfúgios industrializados acaba criando um prato sem alma, uma ovelha Dolly, um clone culinário, um zumbi gastronômico.

Depois do caldo feito “comme il faut” — receitas de caldos básicos estão em qualquer bom livro de culinária — vamos ao risoto! A panela tem que ter fundo largo e grosso para distribuir o calor uniformemente para a maior quantidade de grãos possível. Panela quente, hora da manteiga derreter e suavemente suar a cebola até que ela fique transparente. O arroz deve “selar”, fechando os poros e guardando sabor e textura como em um cofre.

Quando for escolher o vinho para o risoto, não acredite numa das maiores “verdades” da cozinha usual: “o vinho é tão ruim que só serve para cozinhar!” Ora, caros cozinheiros, quando reduzimos qualquer líquido para um molho, o fazemos para acentuar o sabor. O que acham que acontece com a redução de um vinho ruim, tão ruim que só serve para cozinhar? Vinho ruim não serve nem para fazer sagu, e quem o usa com certeza tem o caldo em potinho como parceiro fiel.

O vinho para o risoto tem que ter acidez compatível com o elemento que vai dar sabor a ele e, acima de tudo, deve ser de qualidade equiparada aos outros ingredientes, na proporção de uma xícara de vinho para cada xícara de arroz. Pode parecer exagero, mas exageros na medida certa são válidos!

Presenciei algumas receitas em que o vinho dá lugar a destilados, flambando os grãos do arroz, e, confesso, é surpreendente essa heresia contra a gastronomia italiana. Podemos nos redimir desse pecado flambado com a grappa, destilado italiano feito do bagaço da uva e com até 60% de graduação alcoólica. O fogo é reduzido para se apresentar a grande estrela do prato: o caldo. A partir deste ponto, a paciência é o principal ingrediente.

Alguns puristas preferem usar caldo de vitelo, no máximo o de galinha, sempre clarificados para não “sujar” o creme que envolverá o arroz. Eu tomo como base sempre um bom caldo de legumes. A quantidade de caldo é grande: cada xícara de arroz absorve até quatro xícaras de líquido. E tem um detalhe que não é só um detalhe: o caldo deve estar quente, colocado concha a concha, para que o amido do arroz se desmanche lentamente.

Quando e como agregar os ingredientes que darão sabor ao risoto é uma operação quase matemática, que envolve química, física e muita, mas muita intuição! Respeitar o ponto de cozimento de cada ingrediente é fundamental. Respeitar o ponto de cozimento do arroz é mais que fundamental, é vital!

No Veneto, o ponto é all'onda, quando o risoto se movimenta em ondas na panela e cai da colher como uma calda grossa. Gosto destes romantismos culinários; observar a onda formada em uma panela com risoto é quase um poema, e felizes os cozinheiros que conseguem compreender esse ode à boa gastronomia.

Para finalizar, adicione manteiga sem economia, e muito menos culpa: pense no colesterol na hora de comer o pão na chapa, a empadinha ou a coxinha, não agora! Parmesão ou outro queijo maturado, o quanto goste e baste! Acerte o sal e a pimenta-do-reino, ambos de preferência moídos na hora — e isso não é um capricho, é respeito ao sabor e aroma!

Sirva imediatamente como protagonista, contracenando com alguma carne que não tire o seu brilho, ou com uma boa salada de rúculas, radicchio ou agrião. Risoto e salada, para mim, o par romântico perfeito de qualquer filme gastronômico.

"Voila", viva o risoto veramente italiano. Bon appetit, ou melhor, buon appetito!

 

 

 

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Sobre o autor

André Vasconcelos

Cozinheiro raiz e autodidata, hoje no comando de sua Cozinha Singular Eventos e d'O Vilarejo Hospedaria e Gastronomia, onde insumos e técnicas são a base de cardápios originais e exclusivos... e aprendiz de escritor também!


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