Um caminho entre lírios, por Luzia Almeida
Em tempos de rotina e repetição, a arte é quem resgata o brilho dos dias

De acordo com a pirâmide de Maslow, o ser humano tem necessidades básicas: fisiológicas e de segurança, tem carências psicológicas e tem necessidades de realização pessoal. Maslow estava certo: são muitas as necessidades dos seres humanos e é necessário que se fale sobre isso, mas sem esquecer a Literatura.
Antonio Candido afirma que a fabulação (a contação de histórias, de fábulas) é uma necessidade. Alguns poderão contestar dizendo “se tenho alimento no estômago e um teto pra me abrigar está tudo bem”. Não, não está! A Literatura é um tipo de expressividade humana, de comunicação e de vida que nos alimenta a alma. Esse alimento diferente do feijão com arroz é capaz de fortalecer nossas ideias e nossos sentidos. A subjetividade do texto literário juntamente com suas várias elaborações inéditas podem ser conjugadas com nossas próprias versões diárias sobre tudo o que vemos e sentimos para recriarmos conceitos. Por exemplo, o poema “Tecendo a manhã” de João Cabral de Melo Neto:
“Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos,
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes”.
Perceberam o tricotar que ele provoca com as palavras? É genial! E a manhã de todos os dias passa a ser uma manhã distinta (Ora! Todas as manhãs são distintas!) por conta dessas combinações magníficas de galos cantando pra nós que acordamos pensando em café. Mas cada manhã é especial, pois cada dia é único. É a repetição que borra o caráter do ineditismo, por isso a Literatura é importante: ela resgata os sentidos que foram embotados pela repetição e nos concede cores e leveza de volta a partir da ressignificação da imagem.
Esse poema de João Cabral de Melo Neto publicado na obra “Educação pela pedra” (1962-1965) escangalha nossa noção de manhã-repetida para erguer outra nova. Ímpar. Uma manhã sugerida e construída a partir dos cantos dos galos. É surpreendente! É maravilhoso! E o título do poema com o verbo no gerúndio assegura essa noção de construção, de tecer “tecendo” no ato do canto do galo. É fantástico! E é interessante porque na segunda estrofe o eu lírico já não menciona mais os galos, talvez, porque a manhã já construída como um lírio — que acabou de desabrochar e que nem sabe ainda que é lírio — treme com a leveza de sua estrutura:
“E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretecendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação,
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que tecido, se eleva por si: luz balão.
É inacreditável que um ser humano possa escrever algo assim!... A metáfora do sol sendo “luz balão” é o projeto concretizado a partir dos galos. Eles são os operários do sol-pirâmide e são grandes construtores. Se pudéssemos avaliar as dimensões que existem entre um galo e o sol... são muito distantes!... Mas, sob a ótica do poeta, o sol é criatura: foi construído a partir do tricotar cantado dos galos nos quintais afora. Esse (des)arranjo de dimensões — galo/sol — só pode acontecer na poesia. E essa necessidade de acontecer poema, de escrever o belo, o inédito... escrever essas percepções deixam-nos extasiados e felizes com a capacidade com que fomos contemplados para amar a manhã de João e seguir um caminho entre lírios. Sim, a Literatura é um caminho entre lírios e é disso que precisamos.
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Sobre o autor

Luzia Almeida
Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação
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