“O açúcar” de Ferreira Gullar e as antíteses sociais, por Luzia Almeida

Poemas existem para serem digeridos sob a luz do luar... para serem tomados aos pequenos goles como se deve beber um bom vinho do Porto. Poemas são palavras que voltaram da guerra com marcas de muitas lutas e ainda com um resto de lucidez. Existe muita guerra no poema “O açúcar” de Ferreira Gullar que, aparentemente, doce revela o amargo de um tema político-social: “O branco açúcar que adoçará meu café / nesta manhã de Ipanema / não foi produzido por mim / nem surgiu dentro do açucareiro por milagre. / Vejo-o puro / e afável ao paladar / como beijo de moça, água / na pele, flor / que se dissolve na boca. Mas este açúcar / não foi feito por mim”. Ver o branco do açúcar numa manhã de Ipanema sugere uma investigação psicológica sobre origens e pirâmides.
Os olhos do poeta Ferreira Gullar desviam da cor, esquecem Ipanema e chegam à verdade dolorida da doçura que contemplam: “Em lugares distantes, onde não há hospital / nem escola, / homens que não sabem ler e morrem de fome / aos 27 anos / plantaram e colheram a cana / que viraria açúcar”. A origem do açúcar-27 que o poeta analisa não combina com a manhã ensolarada num apartamento em Ipanema, não combina com o café, com o queijo, com pão, com a manteiga e com as frutas que o poeta tem diante de si numa mesa com uma toalha bordada e branquíssima. Ele, o poeta, não pode tomar café como se fosse uma criança, ele não pode tomar seu café em paz porque esse branco açúcar não consegue apagar as antíteses sociais que ele acabou de construir: “Em usinas escuras, homens de vida amarga / e dura / produziram este açúcar / branco e puro / com que adoço meu café esta manhã em Ipanema”. O flagrante da antítese que acomete Gullar traça uma linha da sua festiva mesa até uma usina escura, com homens analfabetos e famintos. A antítese da desigualdade social é motivo de dor para quem é intelectual e se vê diante as trevas da ignorância no açúcar. É importante anotar que as percepções levaram o poeta à reflexão e à dor. É essa dor desabrocha em forma de poesia: um tipo de 180 social que alerta contra o analfabetismo e contra a fome e que conscientiza a sociedade sobre camadas.
Leio o poema de Gullar e penso na força da palavra engajada, na palavra que se destaca e não volta atrás. É essa palavra que temos para pensarmos numa sociedade humana e sem cor.
E quando falo em pirâmides, não me refiro à Quéops nem a Quéfren nem Miquerinos, refiro-me a uma pirâmide paradoxal que tem uma grande base achatada por uma ponta fina de privilegiados. Uma pirâmide que não se deixa vencer porque é feita de classes. Mesmo sendo feita de classes, de qualquer maneira, pirâmides são sepulturas.
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Sobre o autor

Luzia Almeida
Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação
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