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Pele Existencial - A construção de um Eu, por Denise Evangelista

Traumas e negligências deixam cicatrizes emocionais que afetam nossa autoestima e capacidade de autocuidado. (Foto: Divulgação)

Publicado em 31/08/2025

Construímos uma imagem de nós mesmos, para nós mesmos, a partir do olhar dos outros. Na infância, o olhar dos nossos pais, cuidadores ou responsáveis, o olhar dos nossos irmãos, amigos, colegas, enfim, das pessoas que irão compor nossas relações afetivas e sociais. Todos esses “outros” serão como espelhos que, ao se colocarem à nossa frente, dirão o que veem, serão como nossos próprios olhos. Dirão se gostam ou se não gostam; se e quanto captam de nós; se nos compreendem ou antes de nos compreender, nos julgam;  se acolhem ou rejeitam. 

São os outros com seus olhares e seus gestos que vão nos ajudar a construir o nosso “contorno”, uma noção de quem somos e do nosso valor. Serão eles que vão lançar luz ou sombras; projetar eles mesmos sobre nós, ou imagens que só eles mesmos enxergam. Serão eles, com exemplos, palavras, atitudes e expectativas que vão contribuir para irmos desenhando, preenchendo lacunas e redesenhando, ao longo da vida, a ideia que temos de nós mesmos. Através das relações que estabelecemos vamos construindo nossas fronteiras de contato, as próprias percepções do mundo,  posturas predominantes, crenças e pressupostos. É a partir dessas relações que vamos construindo uma espécie de “pele existencial”, que nos dará ou não nos dará unidade e proteção psíquica,  e que tipo de unidade e de proteção. 

A protagonista da série, Normal People, baseada no romance da irlandesa Sally Rooney, é um excelente exemplo para entendermos essa construção cheia de falhas. A personagem negligenciada em suas emoções vive sem reconhecer seus próprios limites já que foram continuamente violentados, negados ou ignorados por quem deveria tê-los protegido e/ou acolhido. Marianne é quase um personagem fantasma, permitindo a existência dos outros, mas negando a sua própria existência. Só quando, já adolescente, ela conhece uma outra personagem, que a enxerga e considera, Marianne vai começar um outro caminho, tortuoso, desafiando até o extremo seus próprios limites, na busca de encontrar direitos que sempre desconheceu, inclusive o direito de existir. Não sabemos se ela consegue, mas ela tenta, se arrisca, a fim de saber quem é e até onde certas experiências são psicologicamente permissíveis.  

Cada um de nós sabe como uma pequena queimadura incomoda, uma ferida que não fecha, uma dor que persiste e com as quais temos que conviver até que a “pele”, ou nossas fronteiras que nos dão unidade e proteção sejam restauradas. Transtornos e diversos desequilíbrios psíquicos são manifestações de traumas ou dos mais diversos limites que foram negligenciados ou ultrapassados ao longo do percurso e que ficaram sem cuidado. Violências ou outros acontecimentos para os quais não estávamos preparados têm potencial para desestruturar nossa psique.Na infância e na adolescência, por sermos mais frágeis e vulneráveis,  esse potencial é claramente maior. Podem representar comprometimentos mais graves, afetando nossa constituição, a noção de quem somos, dos nossos direitos, como nos relacionamos com os outros, que tipo de defesas e quais estratégias iremos potencializar para enfrentarmos as exigências do mundo. Da mesma forma que capacidades irão nos habilitar a fazer as escolhas que iremos fazer mais tarde.  

A capacidade de autocuidado e da autoestima são decorrentes da forma como fomos cuidados.  O modo como isso vai se dando no decorrer da vida de cada pessoa, tem tudo a ver com o modo como ela foi tratada e passa a se tratar; como introjeta a forma como foi cuidada, olhada, valorizada ou não. Autoresponsabilidade afetiva  é uma coisa que se aprende, ou não se aprende direito. A série Normal People é uma aula nesse sentido.  Sobre o poema de Fritz Perls que ficou conhecido como “Oração da Gestalt”, Aline Purvinis, do Núcleo de Gestalt Terapia Integrada de Campinas, afirma que “somos tratados da mesma maneira como nós nos tratamos”, ou dito de outra forma, nos tratamos e permitimos certos tratamentos,  do mesmo modo  como fomos tratados. 

Se quisermos desenvolver uma verdadeira auto responsabilidade afetiva teremos que descobrir em nós os sentimentos, as emoções, os limites mal delineados ou ultrapassados durante nosso processo de crescimento, para então podermos nos tornar, nós mesmas, pessoas que se acolhem, se respeitam, se reconhecem e cuidam amorosamente de si mesmas. 

 

 

 

 

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Sobre o autor

Denise Evangelista Vieira

Psicóloga formada pela UFSC e em Artes Cênicas pela Udesc. Escreve sobre o universo humano. Quem somos e em quem podemos nos tornar? CRP 12/05019.


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