Digestão Psíquica, por Denise Evangelista Vieira

Somos feitos de linguagem. Sendo a ponte entre nosso organismo e o meio, ela nos conduz no processo de nos tornarmos seres sociais, com crenças e valores, habilidades e tendências. É através da linguagem que damos significado às coisas. A linguagem regula a forma como nos movimentamos, nos relacionamos e fazemos escolhas, ou seja, o nosso comportamento, aquilo que aparece na relação com o meio e nos papéis sociais que desempenhamos.
É por meio da linguagem que introjetamos a Cultura, e, especialmente, a Cultura de nossas pequenas comunidades. Como num processo digestório, vamos assimilando ou rejeitando tudo aquilo que é imaterial, mas que constituirá a nossa própria substância. Por meio dos processos educacionais, bem como das nossas relações afetivas, formamos aquilo com o qual nos identificamos ou rejeitamos.
Necessitamos sentir que fazemos parte, porque é inescapável a condição de interdependência. Carecemos nos relacionar, fazemos trocas durante toda a nossa vida; são elas que nos dizem quem nós somos, a cada instante, nos dão forma e nos transformam.
Não é possível precisar quem vem primeiro, se o ovo ou a galinha, mas o fato é que há crianças que têm mais facilidade de tomarem como suas as “lições” aprendidas na família e na escola e há outras que são mais resistentes, questionadoras e desde cedo são tidas como rebeldes. Muitos fatores podem contribuir para um ou outro comportamento. Sem entrar na complexidade e no mérito dessa questão, as primeiras parecem assimilar, como se ingerissem alimentos líquidos, as segundas, alimentos sólidos, que requerem uma maior mastigação.
Todo esse processo de aprendizagem que nos identifica como pertencendo a um determinado grupo (não necessariamente o nosso de nascença) implica diversos processos psíquicos. Estão entre eles os mecanismos de introjeção e o de projeção. O primeiro é o processo de assimilação que nos habilita como seres sociais, o segundo diz respeito a tudo aquilo que não reconhecemos como parte de nós. Há aí tanto o processo de diferenciação, que nos torna únicos, como também o de alienação psíquica, aquilo que recalcamos, ou, dito de outra maneira, tornamos inconsciente e que poderá resultar, no mecanismo de projeção. São como forças psíquicas dinâmicas que estão relacionadas entre si.
Quanto mais inconsciente é o mundo psíquico de determinado indivíduo e quanto mais força exige dele para que se mantenha “desconhecido” (do próprio indivíduo e de outras pessoas), maior será a necessidade de projetar em outros demandas e desejos, que, embora sejam próprios, ele não os acessa. É nesse processo todo que se formam os preconceitos.
Processos educacionais violentos, excessivamente repressivos ou negligentes, podem resultar em comportamentos manifestamente questionadores ou, na outra ponta, em comportamentos vigilantemente enquadrados nas expectativas sociais. No primeiro grupo estão os abertamente questionadores, no segundo, os excessivamente adaptados às normas e às tradições.
Como, digamos, dá um trabalho danado nos tornarmos quem somos, o preconceito aparece como uma espécie de aliado disfarçado, que nasce da necessidade de defendermos a nós mesmos; ou aquilo que pensamos que somos. Quando fazemos piadas em relação aos outros, ou quando condenamos este ou aquele comportamento de alguém da nossa comunidade ou de uma pessoa pública, sem nos darmos conta, estamos defendendo a nós mesmos. O preconceito atua como mecanismo projetivo, com maior ou menor intensidade, de forma explícita ou implicitamente violenta, e representa uma força que impede — quase sempre por medo — um mergulho em nós mesmos, em nosso próprio inconsciente.
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Sobre o autor

Denise Evangelista Vieira
Psicóloga formada pela UFSC e em Artes Cênicas pela Udesc. Escreve sobre o universo humano. Quem somos e em quem podemos nos tornar? CRP 12/05019.
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