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A “Canção de outono” de Paul Verlaine, por Luzia Almeida
É um tipo de mistério que não pede segredo nem aplaca a consciência

A palavra anoitece a página e os violões dos poetas são de uma grandeza que escancara a dor numa elegância fina e soberba de rainha. (Foto:Pixabay)

Publicado em 02/02/2024

A palavra carrega o coração. Carrega no sentido do peso da angústia e da dor. Carregar é verbo associado à palavra que brinca nos labirintos dos sentidos dos mortais. Assim, é nesse sentido que Paul Verlaine revela-nos seu coração belo e cansado. Ele discursa sobre dores e lamentos e congrega à música a beleza de escrever ainda que não haja sol.

O poema “Canção de outono”, do poeta francês Paul Verlaine (traduzido por Guilherme de Almeida), tem a ilustração de uma estação do ano que, na queda das folhas, revela-nos dores tão belas quanto sonoras: cair não é verbo raro: “Esses lamentos / dos violões lentos / do outono /enchem minha alma / de uma onda calma / de sono”.

Essa associação da música com os sentimentos do eu lírico aponta uma introspecção que só a palavra pode revelar. As notas “dos violões lentos” levam-nos aos “Violões que choram...” de Cruz e Souza e a dor da melancolia se propaga no ar dos séculos pois dor e melancolia estão pautadas na musicalidade. Tudo fica potencializado se a memória pode se apropriar de recursos que vão além das letras, isto é, a adição da música: “Ah! plangentes violões dormentes, mornos, / Soluços ao luar, choros ao vento... / Tristes perfis, os mais vagos contornos, / Bocas murmurejantes de lamento”.

A palavra anoitece a página e os violões dos poetas são de uma grandeza que escancara a dor numa elegância fina e soberba de rainha. A música nasceu para o trono. A “Canção de outono” de Verlaine é um tipo de mistério que não pede segredo nem aplaca a consciência: “E soluçando, / pálido, quando / soa a hora, / recordo todos / os dias doídos / de outrora”. Há um mistério sobre a causa do soluço, mas não chega a ferir os sentidos porque “soluçar” também é um tipo de reflexão emocional. Quando a emotividade se desgarra da razão, o soluço é a ponte de retorno ao caminho da vida mesmo com a dor. Percebe-se neste soluço uma disposição para o tempo que se perdeu ou que se ganhou: “E vou à toa / no ar mau que voa. / Que importa? / Vou pela vida, / folha caída / e morta”. Esse ir “à toa” é flagrante para os românticos. O eu lírico vai no embalo do vento... os motivos? Ninguém sabe.

Eles não são tão pertinentes assim, porque toda essa angústia pintou uma paisagem (eis a metáfora da dor). A palavra ruminou a ideia da existência de uma maneira tão climatizada que “a folha caída” é representativa de um tempo de outono e de um tempo de existir mesmo que sublimado pela morte. A folha de outono faz parte de um cenário cinzento e ilustra a desesperança do eu lírico. Existir ainda que metáfora no “ar mau que voa”, é existir consciente das outras estações. E se o “ar mau” é o tempo presente, nem por isso é mais importante.

A palavra carrega o coração e já não cabe mais dizer “Eu te amo” é necessário que se diga “Minha alma de sonhar-te anda perdida”. É necessário esvaziar os sentidos para que outros versos possam fazer anoitecer outras páginas. Assim, numa despedida
dizer “Adeus” não resolve: é necessário que se diga: Parto para longe dos teus olhos para que de alguma maneira o teu coração me procure.

A palavra em potencial não precisa de adjetivo. Ela ferve no coração para que os sentidos se organizem numa dinâmica de Kafka. E quando isso acontece, não há o que investigar: a palavra já carregou o coração.

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em comunicação.


Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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