Redação do Enem 2024: história e resistência além da palavra, por Luzia Almeida
O tema da redação do Enem 2024 apresenta a história que deveria ser contada e não foi, apresenta a cultura que deveria ser apreciada e vivida plena de significados e foi negada. Não é à toa que o primeiro texto motivador da prova focaliza a palavra: “Herança — o legado de crenças, conhecimentos, técnicas, costumes, tradições, transmitido por um grupo social de geração para geração; cultura”. Esse verbete do Dicionário Houaiss da língua portuguesa abraça a ideia de inventário e aponta para um ouro que quase se perdeu: a herança africana no Brasil.
O segundo texto motivador nos constrange com uma verdade que escancara a situação social do Brasil no que se refere à cultura, ou melhor dizendo, à negação de uma cultura que faz parte das entranhas do Brasil: “As culturas africanas e afro-brasileiras foram relegadas ao campo do folclore com o propósito de confiná-las ao gueto fossilizado da memória”. Esse pensamento do professor Eduardo Oliveira é ilustrado com as representações que se tem da herança africana hoje, como ele mesmo diz “Folclorizar é reduzir uma cultura a um conjunto de representações estereotipadas”. Tais representações enterram o valor cultural numa estratégia de dominação que “é alienar do sujeito cultural sua possibilidade de produzir os significados sobre seus próprios signos idiossincráticos”. Nesse sentido, a estratégia de dominação aliena o sujeito cultural quando tenta apagar seus significados. Mas, felizmente, é uma tentativa que não vingará eternamente haja vista os indicadores de correções no que tange ao direito cultural.
O tema da redação do Enem 2024 — um outdoor que indica a direção do direito sociocultural — trouxe sol num cenário de outono: o sol da razão e da maturidade. Uma notícia brilhante ecoou no país de norte a sul: “desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Sim, há desafios a serem vencidos. Desafios (no plural) é uma palavra que não assusta mais. Não há o que temer, a luta por uma quebra de invisibilidade cultural é um caminho a ser percorrido por todos nós que entendemos a gênesis do povo brasileiro. Já podemos rasgar o rascunho porque a escrita de um Brasil passado a limpo já havia começado e se solidificou domingo com a caneta.
Pensar em milhões de jovens produzindo textos a partir de uma reflexão legítima sobre direito cultural é espetacular. Há muita vida a ser produzida e resgate cultural nas páginas que orientam um entendimento digno que havia sido negado, uma herança que precisa ser compartilhada porque é legal, é legítima e é motivo de esperança para um futuro melhor. Um futuro com promessas de equidade é a base de uma proposta de intervenção saudável contra todo tipo de racismo e alijamento cultural. Escrever com o objetivo de saudar um novo tempo que se apresenta no contexto social brasileiro cancela as parcelas de invisibilidades de um povo que sou eu, que somos nós.
Os “desafios para a valorização da herança africana no Brasil” permitem-nos refletir seriamente sobre os valores que estão na base de nossa origem, do nosso sangue e de “quem foi de aço nos anos de chumbo”. Desafios anunciados na voz do poeta que não entendia, não aceitava a presença de navios com correntes. Desafios que estão prenhes de superação porque também apontam a força do Brasil de Castro Alves.
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Sobre o autor
Luzia Almeida
Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação
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