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“Anjos de Miriti” de Pedro Augusto Baía e outros anjos, por Luzia Almeida

Deveria haver homens e mulheres sensíveis à visão de adolescentes sem mãos, sem pernas, sem escolas... (Foto: Divulgação)

Publicado em 21/06/2024

          O livro de contos “Corpos benzidos em metal pesado” do escritor Pedro Augusto Baía, ganhador do Prêmio Sesc de Literatura 2022, convida-nos a pensar nas dores dos outros: “Sem piedade, a maromba engole as duas mãos de André. Ele ouve o som dos ossos dos dedos esmagados pela pressão da máquina. Tenta se atirar para longe da tragédia, mas o antebraço começa a ser moído”. Assim o autor nos apresenta o seu personagem... já sem as mãos. E não se pode fazer nada. Mas, se o conto é uma ficção, também é o retrato da realidade de muitos Andrés.

          Deveria haver uma campanha, uma força tarefa, uma sinergia contra o trabalho infantil. Toda a sociedade envolvida de modo prático, sistêmico e eficiente combatendo as marombas. Deveria haver homens e mulheres sensíveis à visão de adolescentes sem mãos, sem pernas, sem escolas... E assim, haveria meninos com mãos para segurar seus livros. Este conto do Pedro Augusto Baía é um grande argumento para a proteção de crianças e de adolescentes no que se refere a acidentes de trabalho. O conto é um grande argumento a favor da vida, da arte e da cultura. E, mesmo assim, provoca-nos sofrimento. Um sofrimento melindroso por alguém que perde as mãos e desse modo se afasta do fazer artístico. Um sofrimento inteligente que provoca empatia pelo adolescente que na véspera do aniversário perde as mãos: “Amanhã ele completará 14 anos, o que é um privilégio — Paulo perdeu a perna esquerda aos 9”. O privilégio consiste em viver até (quase) 14 anos inteiro. Inteiro!    

          A Literatura aponta o caminho do sofrimento que é o esqueleto da existência humana. A vida que se anuncia na página de um livro convence-nos de uma realidade que grita e implora por socorro. São essas vidas de Andrés e Paulos partidos e engolidos por máquinas que revelam o coração de uma sociedade que não conhece a palavra equidade. O personagem André tinha um primo cego que não podia esculpir anjos de miriti e André se iguala ao primo na impossibilidade de realizar a tarefa. Eles são arrastados pelos carrascos da desigualdade social. Há um soluço que escapa de cada página deste livro que, na beleza da tristeza, podemos visualizar a pureza das lágrimas do personagem, como disse Florbela Espanca: “Os dias são como outonos: choram, choram / Há crisântemos roxos que descoram / Há murmúrios dolentes de segredo”. Sim, se o choro faz parte da vida, também faz parte da literatura de Mário Quintana neste soluço humano revestido de melancolia na “Canção da garoa”: “Em cima do meu telhado, / Pirulin lulin lulin, / Um anjo, todo molhado, / Soluça no seu flautim”.

          Há um singelo acordo melancólico entre os anjos de Pedro Augusto Baía e de Mário Quintana: um anjo sem asas e o outro molhado em cima do telhado do poeta. “E chove sem saber por quê... / E tudo foi sempre assim! / Parece que vou sofrer: / Pirulin lulin lulin...”. A construção poética que vemos desabrochar no poema “Fumo” de Florbela Espanca também se percebe com a mesma nostalgia em Mário Quintana. Uma canção de amor e uma canção de sofrimento que se traduzem na caneta do escritor paraense quando convoca nossa atenção para os dramas e tragédias enfrentados por tantos irmãos nossos.

          E, assim, ainda tratando de anjos, havia um apresentado por Lygia Fagundes Telles no seu conto “Natal na barca” — um anjo invisível —, mas esta história vai ficar pra outra sexta-feira.

 

 

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Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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